7.4.10

O cappucino de 60p, a paixão desenfreada e a moralidade

Tomava um cappucino de máquina que me custou 60p. Nada mal para um cappucino de 60p. Comia uma fatia de bolo de cenoura com cobertura de iogurte que me custou 1 pound. Nada mal também. Sentada na poltrona sobre a qual o sol esbanjava-se, observava as belas criaturas que passeavam ao meu redor. Como são belas! Seriam assim mesmo tão belas, ou será o calor e o brilho do sol reluzindo em suas faces agora um pouco mais coradas? Ao fechar os olhos, via um vermelho alaranjado daqueles de quando fechava os olhos para descansar do caminho seco e quente nas trilhas do cerrado. O sol de primavera me levou lá. Reparava na moça de felinos olhos azuis e sobrancelhas finas e compridas acompanhada de seu namorado não tão charmoso nem tão felino quanto ela. Observava um outro rapaz sentado à mesa elevada com quatro garotas ao seu redor. Deviam ser colegas de turma. Estava tímido, participava da conversa mas não olhava para nenhuma delas. Não parecia ser daquele que acha uma imensa vantangem demonstrar aos outros machos ao seu redor quantas pavoas conquistou. Terminei o capuccino de 60p e a fatia de bolo de cenoura de 1 pound. Que imensa vontade de me deitar sobre um dos banquinhos em frente à biblioteca onde ninguém nunca se deita. Os bancos de madeira estavam vazios, mas que pena, quem compartilharia comigo o prazer de ser abraçada pelo sol? Fui. Possuía a crença de que lá fora estaria tão quente e aconchegante quanto do lado de dentro das paredes de vidro da área reservada às máquinas alimentíceas, aos conversadores, aos cansados, aos preguiçosos, aos procastinadores, aos sonhadores, aos confusos, aos alegres, aos tristes, aos estressados, aos maus, aos bons, aos comportados, aos de senso de humor inglês, aos de senso de humor irlandês e a todos esses juntos. Deito-me sobre o banco do lado de fora. Aos poucos, casais de namorados empuleiravam-se nas réstias de sol. O céu azul, tão azul, tão raro, olhava-me de frente, olhos nos olhos. Havia uma brisa primaveril, um pouco destemperada em princípio, mas que logo se amainou. A música aos meus ouvidos ('Your face is pale/ Your lipstick has gone -- astraaay'), o vento, o banco no meio do pátio, eu era o centro do universo ('Moonlight is bleeding from out of your soul...'), o centro, o princípio e o fim. O mundo girava, as pessoas caminhavam, os namorados acarinhavam-se, as nuvens despediam-se e encontravam-se; só permaneciam eu, o céu e o banco no meio do pátio, o meu palco. Os transeuntes eram então, necessariamente, os meus espectadores e eu, a grande atriz e estrela, eu e o azul daquele céu, meu antagonista. E eu me sentia a cálida e torpe amante bígama das trevas e do sol. Um amor pagão é esse o nosso, o de nós três. De repente, sou surpreendida: "Are you feeling well?". "Sorry?", retiro os fones de ouvido. "Are you feeling well?". "Oh, yeah, thanks, I'm just enjoying the sun." "Oooh, I'm sorry, there're security guards at the reception desk, you can talk to them whenever you don't feel well." "No, I'm perfectly well, thanks, it's just that it's such a beautiful day." "I've just moved to a house in the country where there's a garden. My mom used to work on the garden. I've always lived in the city, it's my first time working on a garden. My mom used to work on it." "Sounds great." "Yes, but if you're not well, talk to the guards." "Thanks, I'm fine." "Yes, my first time working on the garden where my mom used to work." Retirou-se a moça de uns quarenta anos, magra, de óculos e casaco largo demais para ela. E foi decidido que eu não poderia permanecer por muito mais tempo naquela orgia pagã. Voltei à biblioteca.