20.10.14

Anti-gravitacional


Estava num cômodo familiar, mas não sabia exatamente onde. Se era a minha casa ou não, parecia tanto fazer, só sei que a sensação era de familiaridade. O estranho é que estava suspensa, era como se pairasse. Apesar de flutuar, não me sentia leve. Uma força me fazia permanecer quase que rente ao teto, olhava para baixo, mas não conseguia falar. Na verdade, eu nem tentava falar. A comunicação acontecia, ao menos na minha percepção, pelo olhar. 

Pessoas conhecidas e próximas me olhavam lá de baixo. Nada faziam para me tirar daquele estado gravitacional invertido, mas eu não ressentia isso. Havia uma certa cumplicidade no olhar daquelas pessoas, que tampouco sei quem eram. O que sentia por elas parecia-se com o modo como o cômodo me fazia sentir: eu estava segura, confiava no lugar e nas pessoas, mas a força que me impedia de mover me dava insegurança.

O único movimento que parecia haver ali naquele momento quase claustrofóbico era o dos olhares. O das pessoas na minha direção e o meu no delas. Pelos seus olhos, via-me rente ao teto, sem conseguir me mover. Elas olhavam para mim e eu via a minha ansiedade nos olhos delas. Pelos meus olhos, percebia que estava no lugar errado, que minha posição estava errada. A sensação da posição "errada" ou de "fora do lugar" vinha do fato de que todos estavam em pé sobre o que normalmente é tido pelo chão e eu deitada, estirada no ar. Por nada conseguiria descer. Queria mexer os braços e as pernas, como se estivesse numa piscina para me impulsionar para baixo, mas de nada adiantava. Sentia como se de fato me mexesse, mas os movimentos eram tão pequenos que não conseguia sair do lugar.

O cômodo tinha um piso de taco. Tudo era marrom. Ton sur ton marrom. A cena tinha um ar de anos passados, anos que eu não vivi. Aqueles anos que imaginamos e que só podem ser vistos com um filtro de pôr-do-sol. Tinha a sensação de estar num lugar velho, num lugar que já foi.

desenho por R.Alves
Acordo. Sei que é madrugada. Me alivia estar acordada e fora daquele quarto onde não consigo me mover. No entanto, enquanto tento pegar no sono de novo, volto sempre para a mesma posição anti-gravitacional.

Pensando nesse episódio agora, ele deve ter durado só alguns segundos, mas, enquanto sonhava, parecia uma permanência.

18.2.14

Paquetá - RJ, 10.02.2014

Foi ao Rio passear. Mas não para fazer um passeio qualquer. Foi para passear em si mesma, para tentar compreender a finalidade de tudo isso, dos sonhos já realizados tão cedo numa vida que se fazia sentir tão idosa.

Reencontrou a amiga com quem há anos não passava o tempo fazendo o que gostavam de fazer: bebericar, ponderar as coisas da vida e sentar-se em silêncio, em reverência ao momento presente. Depois de um fim de semana de reencontro tão espontaneamente divertido e profundo, acordou melancólica, com o blues de não poder passar o dia acompanhada. Nove. Nove e meia. Dez horas e finalmente cria coragem, levanta-se da cama naquela segunda-feira preguiçosa. Resolve ir à Ilha de Paquetá ao invés de visitar a moderna Catedral Metropolitana de São Sebastião, avistada do alto de Santa Teresa.

Chegando à Estação das Barcas, tem a gostosa sensação de estar prestes a viajar. A idéia de fazer um passeio pelo Rio literário do século XIX a seduzira. Fantasias adolescentes de um Brasil na era do Romantismo pareciam-lhe um convite tentador. Seria como revisitar um passado que com insistência existiu em sua imaginação no tenro período dos seus doze aos dezessete anos...

No catamarã, em meio a disputas pelos assentos próximos às janelas, conquista o local ideal para apreciar confortavelmente a bela paisagem da costa do Rio de Janeiro e suas ilhotas vizinhas. Quem sabe também meditar um pouco, afinal, é urgente que seja iluminada. A crise dos quase-trinta vem-na consumindo há semanas. De repente, à sua frente, iniciam-se gritinhos de duas crianças. Inadvertidos do sentimento da velha-moça sentada atrás deles, parecem andar no catamarã pela primeira vez na vida:

- Olha, ele vai fazer a curva, deve ser difícil, né?
- Nossa, mas foi tão rápido!

"Crianças barulhentas", pensa, do alto da senilidade dos seus quase trinta anos.

- A gente tá indo pra ponte, olha mãe!

"E assim será até o fim da viagem", bufa em seus pensamentos.

- Olha o pato! Ele vai voar? Pra'onde ele tá indo?
- Olha os outro navio grandão!
- Mas pra onde o pato foi?

E inicia-se a especulação sobre o novo paradeiro do pato. Em meio à elucubração sobre aquele ser mágico e aventureiro, a senil jovem começa a chorar. Via-se num dos meninos que tinha olhos cor-de-jabuticaba cheios de curiosidade e cabelos lisos, finos e escuros, que lhe caiam sobre os olhos, como os dela. Os menininhos a fizeram enamorar-se de sua temporária solidão ao remeteram-na à sua infância. Pensava nos pais que a ensinaram a cultivar o apreço pelo estar em trânsito, pela estrada que tantas vezes fez seus pensamentos perderem-se, pelas nuvens e pelas águas que sempre lhe inspiraram novas estórias. "Papai, sabia que nesse mar desapareceu uma mulher que virou uma sereia e que dá pra ouvir ela falar nessa concha?", noticiou uma vez ao pai, numa praia perdida em Parnaíba.

[É feliz afinal, pondera. Ou pelo menos assim se sentiu durante aquela breve catarse. E ama estar só, apesar da resistência inicial. A combinação de estar só e em trânsito dão-lhe o combustível necessário para reconhecer o quanto a vida que tem é, de fato, a vida que sempre quis ter. Apesar do presente ranço e dos atuais dilemas existenciais que lhe parecem tão perenes, reconhece que fez tudo como gostaria de fazer. O reencontro com amigos antigos lhe fizeram tão bem.]

E desmanchava-se em lágrimas no meio daquela epifania. Naquela comunhão da existência humana. Os menininhos eram ela e ela, os menininhos.



5.2.14

Como um espelho...

Lendo O Último Voo do Flamingo, deparo-me com a fala do feiticeiro, que de tão certeira e acertada, arrepia-me

"Falam do colonialismo. Mas isso foi coisa que eu duvido que houvesse. O que fizeram esses branco foi ocuparem-nos. Não foi só a terra: ocuparam-nos a nós, acamparam no meio das nossas cabeças. Somos madeira que apanhou chuva. Agora nem acendemos nem damos sombra. Temos que secar à luz de um sol que ainda não há. Esse sol só pode nascer dentro de nós." (p. 155)

Encantada com a poesia e a pungência de Mia Couto, penso que esse livro tão moçambicano ergue-se como um imenso e assombroso espelho a quem o lê. 

Retirei a citação da edição publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2000.