30.9.18

mãe

29 semanas de gestação. Inicia-se a segunda semana do terceiro trimestre e também a contagem regressiva. Em pouco mais de 2 meses, teremos aqui um novo habitante da casa e do mundo, um novo humaninho cheio de desejos, sonhos e aspirações. Por enquanto, estamos completamente ligados eu e ele, somos um e dois ao mesmo tempo. O que eu como, ele come, logo que falo as primeiras palavras quando acordo, ele me dá chutinhos ou soquinhos e sinaliza que também acordou. Ele respira dentro e por meio de mim; meus movimentos se tornam um pouco mais lentos que de costume porque meu corpo trabalha também por ele e para ele. Ele cresce e minhas costas doem. Sou uma canguru que carrega esse meu filhote num corpo totalmente adaptado para esta fase. Meus quadris se alargam, meus peitos aumentam e meus hormônios passam por uma grande revolução, tudo isso para abrigar e receber esse filhote que chega em breve - e que, neste instante, me dá chutinhos nas costelas.

Resolvo abrir um álbum velho de fotografias, um álbum rosa com uma elefanta também rosa que segura um ramo de flores e tem um olhar melancólico. O álbum foi organizado por mim quando tinha uns sete anos. Minha mãe tivera a ideia de finalmente juntar fotos minhas e do meu irmão que andavam espalhadas pela casa. A ideia era organizá-las para registrar uma narrativa dos nossos nascimentos, que até então só existiam nos relatos fragmentados dos nossos pais, das avós e de algumas tias. "Você nasceu careca e começou a ter cabelo só depois de dois anos de idade", dizia uma. "Seu irmão nasceu muito cabeludo, um cabelo pretão, parecia o do seu avô (materno)", dizia outra. "Mas depois caiu tudo". Ah, menos mal. O "mas depois caiu tudo" que sempre vinha em seguida aplacava um pouco uma certa inveja que eu sentia.

Mas de volta ao álbum. Na época do ajuntamento das fotos, me lembro que fiz o meu e do meu irmão porque ele era muito pequeno para organizar as dele, devia ter uns quatro anos e pouco. Colei figurinhas felpudas de bichinhos, desenhei arco-íris, colei nossos cartõezinhos de registro de nascimento em cada um. Descobri que nasci pesando 3,630kg às 9h15 da manhã de cesariana porque, apesar de tanto eu quanto minha mãe estarmos perfeitamente saudáveis, eu estava "demorando muito" e "não queria sair da barriga". Histórias de uma década que ainda se perpetuam, só que um pouco menos agora. Aos poucos, bem aos poucos, voltamos a valorizar nascer do jeito bicho.

De tempos em tempos, abria o meu álbum. Meu foco estava sempre direcionado a como eu era quando bebê e nos meus primeiros dois anos. Minha mãe era uma coadjuvante. Ela era o lugar de onde eu saí. Nunca havia reparado na intensidade e na delicadeza dos gestos dela enquanto me segurava ou me amamentava nas fotos. Era como se ela fosse para mim, simplesmente, como eram todas as mães. Ou talvez como deveriam ser. Um comportamento condicionado, normalizado. É assim e pronto. Isso é ser mãe. Mas acontece que minha mãe não foi sempre mãe. Ela se tornou mãe. Mas eu só consegui entender isso quase três décadas depois, somadas a meses de gestação vividos no meu próprio corpo. Só assim começo a entender o que ela deve ter sentido, as transformações físicas, os conflitos internos, a variação de humor, a sensação de falta de controle sobre si e sobre o ser que se forma em você, as confusões mentais causadas por bombas hormonais, especialmente nas primeiras semanas, os medos, as alegrias, a constatação de que o tempo agora passa de um jeito diferente, as restrições e os cuidados alimentares. A dubiedade de tudo isso que vem junto com uma chuva de afeto e a descoberta de si.

Olho para as fotos de novo e tenho um mar de lágrimas nos olhos. Me toca o amor que vejo naquelas fotos - ela só tem olhos para mim e parece se sentir a pessoa mais realizada do mundo. Ela não posa para o fotógrafo. Na verdade, não parece nem reparar que meu pai aponta uma câmera para ela. Está absorta no momento, naquele bebê que franze a testa, faz careta, dá risadinhas e gosta de tomar sol. E que também gosta tanto daquele peito. Reparo pelas fotos que ficamos separadas por longas temporadas no hospital, logo que nasci. Percebo o alento nos seus olhos que vem com a chegada do seu pacotinho. Ela me beija com delicadeza, me dá boas-vindas pela minha chegada e me aninha em seus braços, num corpo que se recupera de uma cesariana.

Penso então na cumplicidade da gestação e na separação do nascimento. As despedidas devem ser tantas e os lutos tão intensos, só que provavelmente deixados de lado para se cuidar de um ser vulnerável e dependente.

Fomos tão visceralmente próximas e nos distanciamos tanto. Levei tantos anos para me tornar próxima a ela de novo. Tive que me despir de tantas camadas minhas para ser capaz de receber os seus afagos de novo. E agora, mais do que nunca, enquanto me despeço da minha vida pré-maternidade, me vem uma chuva de amor e gratidão pela minha mãe. Vejo que seu olhar nas fotos enquanto me segurava e me amamentava não é simplesmente normal, mas é repleto de entrega. Não é  simplesmente a condição maternal: é uma transformação e uma escolha.