31.1.10

Balada do Asfalto -- Zeca Baleiro


Me dê um beijo, meu amor. Só eu vejo o mundo com os meus olhos. Hoje eu tenho cem anos. Hoje eu tenho cem anos e meu coração bate como um pandeiro num samba dobrado. Vou pisando o asfalto entre os automóveis -- mesmo o mais sozinho nunca fica só, sempre haverá um idiota ao redor.

Me dê um beijo, meu amor. Os sinais estão fechados e trago uns trocados pro café. O futuro se anuncia num outdoor luminoso; Luminoso o futuro se anuncia num outdoor.

Há tantos reclamos pelo céu, quase tanto quanto nuvens.Um homem grave vende risos, a voz da noite se insinua -- e aquele filme não sai da minha cabeça. E aquele filme não sai da minha cabeça.

Rumino versos de um velho bardo, parece fome o que eu sinto. Eu sinto como se eu seguisse os meus sapatos por aí. Eu sinto como se eu seguisse os meus sapatos por aí.

Há alguns dias atrás vendi minha alma a um velho apache. Não é que eu ache que o mundo tenha salvação, mas como diria o intrépido cowboy, fitando o bandido indócil: A alma é o segredo, a alma é o segredo. A alma é o segredo do negócio.

--- Sem mais, porque não precisa.

24.1.10

Por favor, não me confundam com a Julie

Não que eu queria dar uma de Julie Powell -- até porque, depois de ler sobre e assistir a uma entrevista com essa jovem, pareceu-me que queria mais era aproveitar-se da fama garantida por seu blog e seu livro para relatar, no mais novo livro Cleaving, confissões sórdidas de sua vida pessoal. Está bem, fui maldosa. Mas achei de fato que quis aproveitar-se da fama para se vender --, mas, quem sabe, um aspecto valioso do melhor do filme é a ideia do processo de desalienação culinária. Desculpem-me os vários e densos travessões e parênteses, mas pareceu-me inevitável agrupar tantas observações ao mesmo período.

Vamos começar de novo. Minhas observações lidas e perdoadas, prossigo. Desde que meu pai me ensinou a fazer risoto (al dente, arroz arbório, manteiga, nunca deixar de dar-lhe atenção, afinal é muito ciumento, caldo de carne e assim vamos nós), nunca mais consegui comer risotos em restaurantes. Sempre me frustrava: o tipo de arroz não estava correto, ou havia passado do ponto, ou, todos os fatores anteriores reunidos, era só um empapado sem sabor. Quando se conhecem as etapas de preparação de um alimento, desenvolve-se um olhar médico-artístico (por falta de um adjetivo) sobre a comida e é quase impossível não estar fadado a se tornar um chato incurável. É o seu destino, o conhecimento rompeu todo o conforto e a segurança que as suas vagas impressões gustativas outrora lhe asseguravam. A infância chegou ao derradeiro suspiro.

Mas, ao mesmo tempo, desenvolve-se um imenso prazer ao cozinhar. Essa atividade torna-se uma verdadeira recreação num fim de semana chuvoso, numa reunião de amigos ou, simplesmente, quando se sente vontade de comer algo... distinto. Residente de um desses países onde se deve desvencilhar do estoque que não é mais a última novidade nas lojas, deparei-me com belos livros de culinária (de capa dura e lindas fotos) na WHSmith por uma bagatela de 5 libras -- custava antes 25. Decidi-me por Marie Claire Kitchen: The Ultimate Recipe Collection (Michelle Cranston 2004) -- e por que os manuais e enciclopédias têm sempre que ser 'ultimate' ou 'the ever best' ou 'the breath-taking' ou ou ou? A palavra final veio da sedução pelas fotos do livro que transformam receitas básicas e essenciais em requinte e, por isso, não posso deixar de atribuir os créditos à fotógrafa Petrina Tinslay (http://www.petrinatinslayphotography.com.au/folio.htm).

Como sempre cozinho comidas salgadas, resolvi experimentar algo que adoçasse o meu dia. Hoje foi a vez dos clássicos muffins de maçã verde e blueberries. Como achei o preço do blueberry abusivo (sim, até aqui), fiz uma troca: maçã verde e ameixas. A troca foi pertinente: as ameixas possuem uma nota azedinha como a dos blueberries. Houve uma falha: a falta de intimidade com o meu forno que deixou os muffins (ligeiramente!) tostadinhos por cima... Mas a textura ficou macia como a dos melhores que já comi que, diga-se de passagem, foram feitos em casa por um amigo da universidade que os distribuia entre os colegas durante a graduação quando queriam recuperar-se emergencialmente de um estado... enfatuado por ervas verdes. Anetodas à parte, numa era em que o mundo parece esquecer-se das etapas da arte de cozinhar e em que as refeições vêm tediosamente prontas embaladas em latas, plásticos ou papelões, entretenho-me, sempre que possível, com a meu recém-iniciado ritual de desalienação culinária.

22.1.10

Sobre 'Blasted', de Sarah Kane

Nesta chuvosa noite de inverno irlandês, inebriada por um pouco de vinho branco, lia a peça da dramaturga inglesa que morreu pouco depois de terminar de escrever seu quinto trabalho, 4.48 Psychosis. A estreia dessa última peça deu-se em 2000, no Royal Court Jerwood Theatre, um ano após seu suicídio. Seja a arte uma figuração da vida e esteja a arte indissociavelmente mesclada ao que é de mais íntimo e pessoal do autor ou não, nessa última peça, Sarah Kane narra a trajetória interna que leva a personagem ao sucidío e comete-o em seguida. Mas não estou aqui para escrever sobre Psychosis 4.48, mas sobre a primeira peça de Kane, Blasted. Senti-me estilhaçada por dentro depois de lê-la. Kane devia estar muito ciente do que queria fazer com aquelas palavras, com a escolha do título. A peça narra ruínas à volta das personagens que parecem ser uma consequência das ruínas da alma. Escrever sobre essa peça que acabo de ler ou não? Relutei, escrevi, apaguei e re-escrevi várias linhas de tão chocante que me foi, mas acho que precisava colocá-la fora de mim, dissipá-la.

Em Blasted (1992), Kane transporta a guerra balcânica, contemporânea daquela época, à Inglaterra. Ela traz a violência, aquela justificada por amor à pátria, por amor à ordem, o estilhaçamento da vida, por dentro e por fora das personagens, à realidade britânica. Um homem mais velho leva sua ex-namorada vinte anos mais nova a um quarto de hotel. Ela, ingênua, acompanha-o por comiseração. Ele parecia infeliz. Ele aproveita-se de sua fragilidade, de suas convulsões epilépticas para saciar a voracidade de seu instinto animal -- invariavelmente justificado pelo adjetivo masculino 'masculino', cujo sentido é invariavelmente ampliado por 'masculinidade'. Na manhã seguinte, um soldado bate à porta. Não estamos mais em Leeds, Inglaterra, estamos na Bósnia. Ou quem sabe a Inglaterra sempre foi a Bósnia.

A transição entre as cenas (trata-se de uma peça de um ato com cinco cenas) é demarcada pela chuva, que começa cálida como aquela trazida pela primavera, é intensificada pela estrondosa chuva de verão, o que demarca a mais grotesca das atrocidades ocorridas, e termina calidamente, encerrando o ciclo, com uma chuva de outono. O violador foi violado por um dos peões da guerra que representa também aqueles que sofreram acusações racistas da parte do violador da jovem de 20 e poucos anos, um galês meio inglês. Todos são maus, todos são bons, todos são fortes, todos são frágeis, todos usam máscaras, todos choram como bebês. O violador agora pede carinho, pede comiseração e morre, com a chuva que lava e tudo leva... Leva quase tudo, mas deixa os seus espectadores desolados.

Blasted é um soco no estômago que produz um vômito sangrento. A arte vomita a vida.

13.1.10

Eveline

Ontem foi a vez de Eveline de James Joyce. Curto conto que se passa pelas lentes da memória da protagonista, que pondera sobre o seu passado recostada à janela da velha casa. Lembra-se da violência sofrida na infância, mas parece vê-la como cicatrizes num corpo que já não sente mais a dor da ferida. Decide partir com o namorado (que não sabe se ama, diga-se de passagem) de navio a Buenos Aires em busca de novos ares. E no fim... A inércia não a permite partir. Segura-se com todas as forças às barras de ferro do porto e nada a tira de lá. Como toda boa e frustrante narrativa que gera fortes expectativas em seus leitores, Eveline desaponta no fim e revela a tendência de alguns de permanecerem sob as mesmas condições. Reelaboro: revela a tendência de todos nós, em algum momento da vida, em alguma faceta nossa, de ter aversão à mudança.

Sinto estar a repetir-me, parece que já escrevi sobre isso mais de uma vez. Pareço estar resistente a mudar também. Enquanto desastres naturais assolam dezenas de milhares de vidas humanas no Haiti, aborreço-me com a arte de revisar trechos do primeiro capítulo da minha tese.

12.1.10

Com candura

Hoje terminei de ler Cândido do Voltaire. Recomendo-o a toda a humanidade. Penso que é um livro para ser relido de tempos em tempos. Não vou citar nenhum trecho pomposo para propagandea-lo. Cândido tem de ser apreciado de acordo com o "como" do desencadeamento dos eventos e as relações ou não-relações entre eles. Cândido pode parecer (e é, em diversas instâncias) singelo, como de fato se comporta o protagonista eponímico, mas existe nessa singeleza a aguda observação dos comportamentos humanos. Essa singeleza revela uma teia suficientemente complexa para envolver o leitor mais dostoieviskiano. Quem me dera ter mais candura.

10.1.10

Sobre como e quando decidiu começar a jogar rpg


Redescobriu um prazer tão infantil nas estórias de seres e lugares inventados. O lugar das fábulas celtas, onde vikings (ou "víquingue", em bom português!) nórdicos sentam-se em volta do fogo para compreender como os primeiros pássaros pretos vieram à Irlanda e como, fabulosamente, procriaram debaixo do chapéu do nadador que os trazia diretamente da Noruega, por horas a fio percorrendo as águas congelantes do Norte. Lá do Norte do Mundo. Esses seres eram grandes, tinham barbas e cabelos compridos de cor de fogo. Eram brutos e selvagens, mas tão desengonçados e pueris.

Também possuía imenso prazer no lugar onde habitavam seres belos e esguios, que viviam em plena harmonia com tudo o que os rodeava. Árvores flutuantes, cachoeiras tão altas cujas águas evaporavam ainda antes de tocar o chão, caramanchões cujas folhas continham as vozes de seus ancestrais, que já haviam devolvido à Terra a energia que um dia tomaram emprestada. Seres esses que sabiam quando matar outros seres ou quando lhes deixar ir em paz. E mesmo o ato de matar era solene, seguido por um ritual de reverência à Terra. A Terra, a Mãe que gerou, que garantiu a vida e a existência e agora transforma a existência em energia a outrem, ou de volta a si.

Divertia-se com as fantasias a que assistia agora, em sua jovem vida adulta, em filmes e desenhos e com as que lia em livros ilustrados para crianças. Lembrava-se com carinho das brincadeiras com os primos no interior das Minas Gerais: das estórias da alma da noiva de branco que os assombrava à noite na casa onde o pé-direito era alto e não havia forro. A alma da noiva de branco atravessava os quartos, pelo telhado alto sem forro. Ela e os primos dormiam em quartos distintos, mas podiam comunicar-se justamente por causa do teto sem forro. Sussurram e escutavam-se comentando sobre a tal da noiva. Sabiam que a alma da noiva na verdade eram os morcegos que habitavam a casa durante a madrugada, mas, quem sabe, eram os morcegos e a noiva também. Durante o dia, acreditavam que a noiva estaria na única capela da cidade. Nunca tiveram coragem de entrar lá. Lembrava-se de que, antes mesmo dessas invenções com os primos, quando ia à praia com o pai, o irmão e a avó paterna nas férias, acreditava escutar vozes de pessoas perdidas no fundo do mar. Comunicavam pelas conchas o seu fado e a sua saudade, para sempre habitantes das vastas águas. Dizia para o pai que sim, que escutava as mensagens desses seres e que sabia do que precisavam. Dizia isso para o irmão e ele não contestava. O irmão reportava as narrativas da irmã ao pai e acentuava a credibilidade das vozes das conchas. Depois saía por aí, contando números infinitos, que até hoje não parou de contar.

A lembranças das suas próprias invenções infantis e das novas-velhas invenções que experimentava em sua jovem vida adulta fizeram-na considerar o alto percentual de sonho que resiste em sua existência. É habitante de diversos mundos, visita-os de tempos em tempos. Inclusive este.