5.12.10

Das paisagens da memória

É incômoda a imposição que se recebe ao escutar a pergunta: 'de onde você é?'. Responder a essa pergunta com sinceridade implica agrupar-me numa determinada categoria mental onde todas as pessoas desse lugar ou dessa região habitam? A que cultura eu pertenço? Ou de quantas culturas eu faço parte?

Escutava 'Scarborough Fair' de Simon e Garfunkel enquanto caminhava em direção à universidade nesta manhã de domingo ensolarada com nuances brancas espalhadas pelo chão e pelos telhados quando me sobreveio uma entorpecente sensação de casa. A música remeteu-me à minha infância, às noites frias e aconchegantes dos meus sete anos de idade quando meu pai e eu íamos às Vivendas, à casa que ele levou tantos anos para construir. 'Scarborough Fair' é tão minha quanto de Simon ou de Garfunkel, é tão minha quanto de americanos ou, quem sabe, até mais minha do que de todos eles juntos. O frio da minha paisagem atual provavelmente não era o mesmo do cenário da infância, mas, naquela época, para mim, a sensação de frio era igual. A música do meu pai, que por tantos anos tocador de LPs dele (era mais moderno do que uma vitrola!), toca agora no meu mini-tocador portátil. Apropriei-me da música dele e ele, por sua vez, apropriou-se da música de outrem. Essa música é a minha história. E onde estou agora, desse lugar faço a minha casa, onde reúno as fotos do passado com os seus cheiros, suas músicas e os seus sentimentos, juntamente com os momentos presentes e as vontades do futuro.

1.11.10

Imune

Era um dia como qualquer outro, acordou, cultivou os seus longos minutos de preguiça na cama antes de se levantar e, enfim, levantou-se. Lavou o rosto, escovou os dentes, aplicou o seu filtro solar facial matutino e começou a pentear os cabelos. Ao passar os dedos entre os seus delicados e sedosos fios, levantou levemente uma mecha de seu cabelo e notou que ali não havia mais as suas finas madeixas castanhas, apenas a maciez do seu couro cabeludo nu. Aflita, ergueu outra mecha e lá estava: outra ausência. Alisou a sua cabeça dessa vez com as duas mãos e, passando os dedos por debaixo dos fios, sentiu a pele que reveste o seu crânio completamente despida, não havia mais dúvida alguma. A ansiedade sobreveio-lhe, por quê de novo? Por que eu? O controle que acreditava possuir sobre as suas aflições, sobre o seu existir, sobre o passar do tempo, sobre o dormir, o acordar, o respirar, o caminhar, lá estava impresso no medo do nu, na ironia que era a sua própria composição. Um corpo que a cada dia aniquilava-se, que protestava contra a sua própria existência, contra a sua vitalidade. Caminhava dia após dia, hora após hora, para o seu desfecho, ora lentamente, ora brusca e violentamente. "O sistema imunológico". "Imunológico", pensou, "imune", "imune a quê?". Não entendia porque não caminhava como os outros, ao desfecho, sorrateiramente, quando o cabelo deixa de estar ali "por causa da idade", mas, no seu caso, "na flor da idade", o seu corpo lhe atraiçoava, não lhe era casa, a casa-abrigo, era-lhe a constatação do que não era, de que não era imune, era suscetível.

29.9.10

A quasi-elaborate free verse poem

How lonely are we, lost wandering souls?
Are we really we, or is just me, or just you, or he, or she?

Is feeling accompanied just an ephemeral state,
and yet solitude our permanent condition?

Are we all, if existentialists, alone, yet
affecting and infecting one another in our loneliness?

Is loneliness to dwell in feeling
in one's own permanent condition?
Can we, or I, ego, actually choose between state or condition?
Alas, the fleeting nature of companionship,
not always a road to tread upon,
But a momentously sudden encounter.




(Painting: Edvard Munch, 1895, Jealousy)

19.9.10

Na cidade do ontem


Na cidade do ontem, os outonos e os invernos são sempre mais longos do que as primaveras e os verões. Com o passar dos anos, as pessoas da cidade do ontem lembram-se de um dia em que aqui houve de fato um verão em que foram às praias do norte, vestiram maiôs e sungas e passaram todo um dia sem agasalho.

A cidade do ontem às vezes chama-se "a cidade do antes de ontem". "Antes de ontem", quando produziam linho com pujança. Quando exportavam cerâmica para os países vizinhos como arte refinada e requintes para a decoração doméstica. Na época em que construíam grandes e luxuosos navios. Antes de ontem construíram o maior e mais forte do mundo. Construíram ainda o segundo maior e mais forte navio de cruzeiro do mundo. De todo o mundo. Na cidade do antes de ontem.

Na cidade do hoje, vemos fotos de ontem e de antes de ontem nas paredes públicas. Na cidade do hoje, as folhas enlameiam o chão e chove até mofarmos as vísceras.

Na cidade do hoje, ontem e antes de ontem, costumava ser mais quente e mais seco. Na cidade do hoje, contemplam-se nos sorrisos das fotos em preto e branco de ontem e no antes de ontem, mas dificilmente compram espelhos.

10.9.10

O golpe

O pirulito adocicado remeteu-lhe a anos passados. Muito anos. Não tantos, se do ponto de vista dos seus sessenta anos, mas ainda assim muitos do ponto de vista dos seus vinte-e-alguma-coisa. Foi tão vivo o sentimento da reminiscência que se apropriou do pirulito por inteiro: arrancou-o vorazmente do palito e começou a salivar maremotos. Atribulou-se por ter de lidar com tantos sabores e dissabores provocados por aquele inocente pirulito. O paladar intenso, o doce, o azedo, as brincadeiras de roda, as cantigas, os sonhos (ah, os sonhos!) os meninos que a faziam de chacota, a raiva, a saliva. Até que engasgou. Teve de engolir o pirulito forçosamente. Restou-lhe o açúcar grudado nas paredes de sua garganta intoxicada.

9.9.10

O vingador

O corpo-limbo. Uma prisão que de tão nula e insossa não nos permite passar algumas horas sentados numa cadeira para -- o que for. O corpo, neste estado, lembra-nos constantemente que está ali, mas bem que não queria ser lembrado. Não é nada, não faz nada além de latejar. Lateja de modo que esquenta ligeiramente acima dos 28° Celsius, instabiliza minimamente a visão e cria um marejar cefálico suficiente para tornar árdua e dolorosa a tarefa de permanecer sentado numa cadeira acolchoada e trabalhar. De aproximadamente 23.5°, a inclinação axial da Terra passa para 25°, os invernos, as primaveras, os verões e os outonos passam todos a ser mais quentes (ou mais frios?) no hemisfério sul ao ponto de mamoeiros ficarem enjoados, mangueiras terem fortes enxaquecas, romãzeiras (as baratas do mundo vegetal) empapuçarem, cajueiros empipocarem, coqueiros ensoparem e cupuaçueiros melecarem. Assim está o corpo-limbo sobre sua cadeira: os olhos ardem, a respiração ofega, a cabeça gira, as pernas incham e, lembrem-se, tudo isso mínima porém suficientemente para não saber declarar-se "doente" ou "são". Temos aqui um limbo corporal. Os mamoeiros ainda dão mamões, mas têm enjoos, os cupuaçueiros ainda dão cupuaçus, mas esses vêm com consistência extra-cremosa, quase escatológica.

O corpo humano recebeu já, ao longo de sua existência, diversos substantivos metafóricos como, por exemplo, tentativa de expressar religiosidade: "Porque somos membros do seu corpo"; "Mas ele falava do templo do seu corpo"; "santuário". Ou um sentido erótico-automobilístico: "Nas curvas do teu corpo, capotei meu coração". Ou um sentido animal: "Esse menino não quieta, parece que tem bicho no corpo". Ou quando, ironicamente, em transtorno, que também pode se classificar como religioso: "Baixou o santo". Esses modos de expressar um estado de ânimo revelam as funções sociais do corpo, sejam elas eucarísticas, sedutoras, perturbadoras, molecas, aborrecedoras ou irritantes. Todas elas têm o seu papel ativo na sociedade.

Mas e quando ao corpo resta a não-atividade, a não-vontade, o não-querer e a apatia? Quando o que lhe resta é estar ali, em plena existência, infelizmente, mas, se lhe pudesse ser concedido um desejo, só um, esse seria a hibernação. Chamo-lhe corpo-limbo, o estado do corpo em que só consegue olhar para si mesmo e sentir a si mesmo. Sentem-se as pernas, as costas, a cabeça, os olhos. Impõem-se-lhe a existência, não batem à porta, entram sem pedir licença e ali ficam, repetindo em antífonas e ladainhas: pernas, pernas, pernas, costas, costas, costas, olhos, olhos, olhos, cabeça, cabeça, cabeça... Sem nos esquecer de que o limbo é vermelho.

7.4.10

O cappucino de 60p, a paixão desenfreada e a moralidade

Tomava um cappucino de máquina que me custou 60p. Nada mal para um cappucino de 60p. Comia uma fatia de bolo de cenoura com cobertura de iogurte que me custou 1 pound. Nada mal também. Sentada na poltrona sobre a qual o sol esbanjava-se, observava as belas criaturas que passeavam ao meu redor. Como são belas! Seriam assim mesmo tão belas, ou será o calor e o brilho do sol reluzindo em suas faces agora um pouco mais coradas? Ao fechar os olhos, via um vermelho alaranjado daqueles de quando fechava os olhos para descansar do caminho seco e quente nas trilhas do cerrado. O sol de primavera me levou lá. Reparava na moça de felinos olhos azuis e sobrancelhas finas e compridas acompanhada de seu namorado não tão charmoso nem tão felino quanto ela. Observava um outro rapaz sentado à mesa elevada com quatro garotas ao seu redor. Deviam ser colegas de turma. Estava tímido, participava da conversa mas não olhava para nenhuma delas. Não parecia ser daquele que acha uma imensa vantangem demonstrar aos outros machos ao seu redor quantas pavoas conquistou. Terminei o capuccino de 60p e a fatia de bolo de cenoura de 1 pound. Que imensa vontade de me deitar sobre um dos banquinhos em frente à biblioteca onde ninguém nunca se deita. Os bancos de madeira estavam vazios, mas que pena, quem compartilharia comigo o prazer de ser abraçada pelo sol? Fui. Possuía a crença de que lá fora estaria tão quente e aconchegante quanto do lado de dentro das paredes de vidro da área reservada às máquinas alimentíceas, aos conversadores, aos cansados, aos preguiçosos, aos procastinadores, aos sonhadores, aos confusos, aos alegres, aos tristes, aos estressados, aos maus, aos bons, aos comportados, aos de senso de humor inglês, aos de senso de humor irlandês e a todos esses juntos. Deito-me sobre o banco do lado de fora. Aos poucos, casais de namorados empuleiravam-se nas réstias de sol. O céu azul, tão azul, tão raro, olhava-me de frente, olhos nos olhos. Havia uma brisa primaveril, um pouco destemperada em princípio, mas que logo se amainou. A música aos meus ouvidos ('Your face is pale/ Your lipstick has gone -- astraaay'), o vento, o banco no meio do pátio, eu era o centro do universo ('Moonlight is bleeding from out of your soul...'), o centro, o princípio e o fim. O mundo girava, as pessoas caminhavam, os namorados acarinhavam-se, as nuvens despediam-se e encontravam-se; só permaneciam eu, o céu e o banco no meio do pátio, o meu palco. Os transeuntes eram então, necessariamente, os meus espectadores e eu, a grande atriz e estrela, eu e o azul daquele céu, meu antagonista. E eu me sentia a cálida e torpe amante bígama das trevas e do sol. Um amor pagão é esse o nosso, o de nós três. De repente, sou surpreendida: "Are you feeling well?". "Sorry?", retiro os fones de ouvido. "Are you feeling well?". "Oh, yeah, thanks, I'm just enjoying the sun." "Oooh, I'm sorry, there're security guards at the reception desk, you can talk to them whenever you don't feel well." "No, I'm perfectly well, thanks, it's just that it's such a beautiful day." "I've just moved to a house in the country where there's a garden. My mom used to work on the garden. I've always lived in the city, it's my first time working on a garden. My mom used to work on it." "Sounds great." "Yes, but if you're not well, talk to the guards." "Thanks, I'm fine." "Yes, my first time working on the garden where my mom used to work." Retirou-se a moça de uns quarenta anos, magra, de óculos e casaco largo demais para ela. E foi decidido que eu não poderia permanecer por muito mais tempo naquela orgia pagã. Voltei à biblioteca.

7.2.10

Sete de Fevereiro de Dois Mil e Dez

Sete de fevereiro de dois mil e dez. Hoje foi o dia em que aquela senhorinha completou cem anos, um mês, duas semanas e dois dias. Nascida aos vinte e dois dias do mês de dezembro de mil novecentos e nove. É difícil escrever, é difícil pensar. Os sentimentos engasgam-se em meus olhos lacrimejantes nesta biblioteca onde escuto barulhos de teclas de computadores. A ideia de ficar sozinha em casa incomoda-me. Prefiro a solidão acompanhada de outros solitários na universidade. É um domingo silencioso em Belfast, o dia é cinza e plácido, mas sinto algo profundo, algo que não cabe em mim, algo bem maior do que eu. Eu temi por esse dia durante um bom tempo. Há oito anos passei a morar a pelo menos dois mil quilômetros de distância dela e temia pelo dia em que seria surpreendida por um telefonema avisando-me sobre sua partida. Mas como havia me prometido que completaria ao menos cem anos e como eu sempre acreditei nela, pois é a mulher mais sábia do mundo, meu temor facilmente apaziguava-se. Eu simulava sensações, imaginava o que sentiria quando ela se fosse. Pressentia o vácuo instalado dentro de mim. O vácuo deixado pela lembrança, pelo abraço que agora se passa somente na minha imaginação. O afago das mãos rudes, calejadas pelo trabalho doméstico e pelo tempo. Pelos seus cem anos de existência. Enquanto isso, choro lágrimas que não se secam, lágrimas que molham meu rosto e também lágrimas invisíveis. Escondo-me por detrás dos biombos dos computadores na biblioteca, onde olhos vizinhos não me alcançam -- ou, pelo menos, acho que não me alcançam. Hoje de manhã, ocorreu-me o porquê talvez de alguns autores iniciarem os seus primeiros livros quando uma pessoa a quem se é fortemente ligado se vai. Existe uma necessidade de imortalizá-la, um medo de que a memória não perdure o suficiente para honrar a passagem dessa existência, ou, "o [seu] breve intervalo de tempo entre o infinito anterior e o infinito posterior".

Eu não sei bem como era essa senhorinha antes da minha existência. Desconheço o que se passou durante a sua infância, a adolescência, o início da vida adulta, os amores, as decepções, o primeiro e único filho, os primeiros netos. O que sei foi-me narrado de surpresa, numa fase em que a vovó passou a lembrar-se e a falar vividamente sobre seus primeiros vinte anos, desabafos divertidos de memórias que vêm como sonhos: ou se fala ou se escreve sobre elas imediatamente, ou elas são perdidas nos vãos da alma, até, quem sabe, resolverem visitar-nos novamente. Soube assim, furtivamente, sobre o primeiro namorado galanteador de seus catorze anos de idade que lhe compunha canções aos pés de sua janela. E isso eu descobri só porque já aos seus noventa e cinco anos, ela, sentada sobre sua cadeira de sempre, ao lado da velha mesa na cozinha da casa que já subsistia antes de mim, começou a cantar durante o café da tarde, com a força de seus pulmões a tal da canção. E, ao fim, toda vaidosa, compartilha conosco o seu segredo: era a música que seu jovem amor lhe confessava na aurora de sua adolescência. Naquele momento, dei-me conta de que ela foi uma jovem moça um dia, conquistadora de corações, de pele macia e olhar pueril. Isso eu nunca soube, nunca vi, aconteceu durante o meu infinito anterior.

Mas o que sei, o que vi e vivenciei foi uma mulher que, de tão autêntica, era engraçada. Acho que não tinha consciência do quanto era divertida com as suas sinceridades: a alguns ofendia, a outros conquistava risos. Mas mesmo os ofendidos tinham-lhe certa reverência; neles havia secretamente um desejo de agrada-la, uma vontade de que ela gostasse deles. Pelo que eu observava, ela apreciava também os sinceros. Tinha sempre prontos o café e o clássico pão de queijo que ficava duro feito pedra se não fosse comido logo que saísse do forno. Depois de alguns anos, ja não os fazia mais. Talvez tivesse perdido a vontade de fazê-los quando já não os podia apreciar. Quando eu era criança, tinha sempre um receio de levar bronca da vovó. Não sei bem porque, não me lembro de um só olhar repreensivo, mas sim de me apertar e me dizer o quanto eu estava bonita e havia crescido. Era com tanto gosto que comia aquelas mangas, aqueles pães-de-queijo que me custaram dentes de leite, o café doce, o arroz com feijão. E aquele cheiro de fumaça que saia pela chaminé do fogão a lenha. Acho que ficava medrosa por causa das estórias do André. Ah, André! Mas, tudo bem, isso nos rendeu tantas invenções e mistérios que nos faziam perscrutar a cidade e a casa (tão grande!) debaixo daquele soléu que nos esturricava durante as caminhadas naquela terra vermelha seca, entre abre-e-fecha-marias. Um dia, Júnior e eu quebramos a torneira do tanque que ficava em frente à casa, perto do chiqueiro. André disse que vovó nos cortaria fora as orelhas e, para nos salvar, planejou uma fuga que, por horas, atarantou meu pai e meus tios.

O tempo se passou, nossa imaginação ja não visitava mais tantos mundos nem escutava mais tantas almas penadas. E a vovó, que para mim passou tanto tempo com oitenta e quatro anos, agora tinha noventa. Noventa e um, noventa e dois... E pediu-nos tataranetos. E olhava-me nos olhos e dizia como eram pretos e bonitos, mais bonitos que os dela, que eram cor-de-mel. Até hoje não sei bem porque a vovó era tão apreciadora de cabelos escorridos e pretos, olhos de jabuticaba e pele cor de jambo. Será que foi assim o seu grande amor?

E, há poucos meses, resolvi apressar-me, pois estava chegando o grande dia, meu e dela: o seu aniversário de cem anos. O dia que sempre quis ver chegar, por capricho infantil, por ter tanto orgulho da minha bisa centenária, que eu sempre achei que fosse eterna, que já vivia eternamente antes de mim e que continuaria depois até... sempre, infinito vezes infinito era a idade dela. Escrevi-lhe uma carta e fiz uma gravação minha lendo-lhe a carta. Era-me crucial que ela soubesse o quanto havia marcado a minha vida, o quanto era parte de mim, o quanto me sentia tão grata e ternamente ligada ela. Que era a senhorinha mais linda de todas, a minha vovó tão divertida e teimosa -- eu tenho sim a quem puxar! E ela soube, acredito eu. A carta foi lida pelo pai, numa de suas últimas visitas a Palmital, poucos semanas depois do falecimento de sua irmã mais nova. Se não compreendeu minhas palavras, creio que as recebeu com aquela alma tão alegre e carinhosa que sempre teve.

E foi assim. Acordei hoje de manhã antes do horário costumeiro de domingos preguiçosos. Acordei tranquila, tinha a mente ativa e tive vontade de ler. Voltei para debaixo das cobertas e, ao terminar 'The Task of the Translator' do Benjamin, ressoa o telefone. Era aquele aviso, temido por tantos anos. Eu queria que ela tivesse me esperado, só um pouco, só mais alguns meses. Mas ela me ouviu, levou com ela minha mensagem, meu carinho, meu amor. Ela sabia o quanto me era fundamental, o quanto meu breve intervalo de tempo só pode ser contado junto com o dela, com a última parte do seu breve intervalo. Que sorte a minha que nossos intervalos se cruzaram, o meu e o daquela senhorinha vaidosa, que todos os dias de manhã, fosse madrugada ou já houvesse sol, penteava os cabelos, pintava seu rosto e recebia de boa vontade o novo dia que estava prestes a começar.

Vó, conseguiu me escutar ou falo mais alto? Espero que tenha muito danoninho onde a senhora estiver. Se não tiver, eu levo depois e faço mingau também.

31.1.10

Balada do Asfalto -- Zeca Baleiro


Me dê um beijo, meu amor. Só eu vejo o mundo com os meus olhos. Hoje eu tenho cem anos. Hoje eu tenho cem anos e meu coração bate como um pandeiro num samba dobrado. Vou pisando o asfalto entre os automóveis -- mesmo o mais sozinho nunca fica só, sempre haverá um idiota ao redor.

Me dê um beijo, meu amor. Os sinais estão fechados e trago uns trocados pro café. O futuro se anuncia num outdoor luminoso; Luminoso o futuro se anuncia num outdoor.

Há tantos reclamos pelo céu, quase tanto quanto nuvens.Um homem grave vende risos, a voz da noite se insinua -- e aquele filme não sai da minha cabeça. E aquele filme não sai da minha cabeça.

Rumino versos de um velho bardo, parece fome o que eu sinto. Eu sinto como se eu seguisse os meus sapatos por aí. Eu sinto como se eu seguisse os meus sapatos por aí.

Há alguns dias atrás vendi minha alma a um velho apache. Não é que eu ache que o mundo tenha salvação, mas como diria o intrépido cowboy, fitando o bandido indócil: A alma é o segredo, a alma é o segredo. A alma é o segredo do negócio.

--- Sem mais, porque não precisa.

24.1.10

Por favor, não me confundam com a Julie

Não que eu queria dar uma de Julie Powell -- até porque, depois de ler sobre e assistir a uma entrevista com essa jovem, pareceu-me que queria mais era aproveitar-se da fama garantida por seu blog e seu livro para relatar, no mais novo livro Cleaving, confissões sórdidas de sua vida pessoal. Está bem, fui maldosa. Mas achei de fato que quis aproveitar-se da fama para se vender --, mas, quem sabe, um aspecto valioso do melhor do filme é a ideia do processo de desalienação culinária. Desculpem-me os vários e densos travessões e parênteses, mas pareceu-me inevitável agrupar tantas observações ao mesmo período.

Vamos começar de novo. Minhas observações lidas e perdoadas, prossigo. Desde que meu pai me ensinou a fazer risoto (al dente, arroz arbório, manteiga, nunca deixar de dar-lhe atenção, afinal é muito ciumento, caldo de carne e assim vamos nós), nunca mais consegui comer risotos em restaurantes. Sempre me frustrava: o tipo de arroz não estava correto, ou havia passado do ponto, ou, todos os fatores anteriores reunidos, era só um empapado sem sabor. Quando se conhecem as etapas de preparação de um alimento, desenvolve-se um olhar médico-artístico (por falta de um adjetivo) sobre a comida e é quase impossível não estar fadado a se tornar um chato incurável. É o seu destino, o conhecimento rompeu todo o conforto e a segurança que as suas vagas impressões gustativas outrora lhe asseguravam. A infância chegou ao derradeiro suspiro.

Mas, ao mesmo tempo, desenvolve-se um imenso prazer ao cozinhar. Essa atividade torna-se uma verdadeira recreação num fim de semana chuvoso, numa reunião de amigos ou, simplesmente, quando se sente vontade de comer algo... distinto. Residente de um desses países onde se deve desvencilhar do estoque que não é mais a última novidade nas lojas, deparei-me com belos livros de culinária (de capa dura e lindas fotos) na WHSmith por uma bagatela de 5 libras -- custava antes 25. Decidi-me por Marie Claire Kitchen: The Ultimate Recipe Collection (Michelle Cranston 2004) -- e por que os manuais e enciclopédias têm sempre que ser 'ultimate' ou 'the ever best' ou 'the breath-taking' ou ou ou? A palavra final veio da sedução pelas fotos do livro que transformam receitas básicas e essenciais em requinte e, por isso, não posso deixar de atribuir os créditos à fotógrafa Petrina Tinslay (http://www.petrinatinslayphotography.com.au/folio.htm).

Como sempre cozinho comidas salgadas, resolvi experimentar algo que adoçasse o meu dia. Hoje foi a vez dos clássicos muffins de maçã verde e blueberries. Como achei o preço do blueberry abusivo (sim, até aqui), fiz uma troca: maçã verde e ameixas. A troca foi pertinente: as ameixas possuem uma nota azedinha como a dos blueberries. Houve uma falha: a falta de intimidade com o meu forno que deixou os muffins (ligeiramente!) tostadinhos por cima... Mas a textura ficou macia como a dos melhores que já comi que, diga-se de passagem, foram feitos em casa por um amigo da universidade que os distribuia entre os colegas durante a graduação quando queriam recuperar-se emergencialmente de um estado... enfatuado por ervas verdes. Anetodas à parte, numa era em que o mundo parece esquecer-se das etapas da arte de cozinhar e em que as refeições vêm tediosamente prontas embaladas em latas, plásticos ou papelões, entretenho-me, sempre que possível, com a meu recém-iniciado ritual de desalienação culinária.

22.1.10

Sobre 'Blasted', de Sarah Kane

Nesta chuvosa noite de inverno irlandês, inebriada por um pouco de vinho branco, lia a peça da dramaturga inglesa que morreu pouco depois de terminar de escrever seu quinto trabalho, 4.48 Psychosis. A estreia dessa última peça deu-se em 2000, no Royal Court Jerwood Theatre, um ano após seu suicídio. Seja a arte uma figuração da vida e esteja a arte indissociavelmente mesclada ao que é de mais íntimo e pessoal do autor ou não, nessa última peça, Sarah Kane narra a trajetória interna que leva a personagem ao sucidío e comete-o em seguida. Mas não estou aqui para escrever sobre Psychosis 4.48, mas sobre a primeira peça de Kane, Blasted. Senti-me estilhaçada por dentro depois de lê-la. Kane devia estar muito ciente do que queria fazer com aquelas palavras, com a escolha do título. A peça narra ruínas à volta das personagens que parecem ser uma consequência das ruínas da alma. Escrever sobre essa peça que acabo de ler ou não? Relutei, escrevi, apaguei e re-escrevi várias linhas de tão chocante que me foi, mas acho que precisava colocá-la fora de mim, dissipá-la.

Em Blasted (1992), Kane transporta a guerra balcânica, contemporânea daquela época, à Inglaterra. Ela traz a violência, aquela justificada por amor à pátria, por amor à ordem, o estilhaçamento da vida, por dentro e por fora das personagens, à realidade britânica. Um homem mais velho leva sua ex-namorada vinte anos mais nova a um quarto de hotel. Ela, ingênua, acompanha-o por comiseração. Ele parecia infeliz. Ele aproveita-se de sua fragilidade, de suas convulsões epilépticas para saciar a voracidade de seu instinto animal -- invariavelmente justificado pelo adjetivo masculino 'masculino', cujo sentido é invariavelmente ampliado por 'masculinidade'. Na manhã seguinte, um soldado bate à porta. Não estamos mais em Leeds, Inglaterra, estamos na Bósnia. Ou quem sabe a Inglaterra sempre foi a Bósnia.

A transição entre as cenas (trata-se de uma peça de um ato com cinco cenas) é demarcada pela chuva, que começa cálida como aquela trazida pela primavera, é intensificada pela estrondosa chuva de verão, o que demarca a mais grotesca das atrocidades ocorridas, e termina calidamente, encerrando o ciclo, com uma chuva de outono. O violador foi violado por um dos peões da guerra que representa também aqueles que sofreram acusações racistas da parte do violador da jovem de 20 e poucos anos, um galês meio inglês. Todos são maus, todos são bons, todos são fortes, todos são frágeis, todos usam máscaras, todos choram como bebês. O violador agora pede carinho, pede comiseração e morre, com a chuva que lava e tudo leva... Leva quase tudo, mas deixa os seus espectadores desolados.

Blasted é um soco no estômago que produz um vômito sangrento. A arte vomita a vida.

13.1.10

Eveline

Ontem foi a vez de Eveline de James Joyce. Curto conto que se passa pelas lentes da memória da protagonista, que pondera sobre o seu passado recostada à janela da velha casa. Lembra-se da violência sofrida na infância, mas parece vê-la como cicatrizes num corpo que já não sente mais a dor da ferida. Decide partir com o namorado (que não sabe se ama, diga-se de passagem) de navio a Buenos Aires em busca de novos ares. E no fim... A inércia não a permite partir. Segura-se com todas as forças às barras de ferro do porto e nada a tira de lá. Como toda boa e frustrante narrativa que gera fortes expectativas em seus leitores, Eveline desaponta no fim e revela a tendência de alguns de permanecerem sob as mesmas condições. Reelaboro: revela a tendência de todos nós, em algum momento da vida, em alguma faceta nossa, de ter aversão à mudança.

Sinto estar a repetir-me, parece que já escrevi sobre isso mais de uma vez. Pareço estar resistente a mudar também. Enquanto desastres naturais assolam dezenas de milhares de vidas humanas no Haiti, aborreço-me com a arte de revisar trechos do primeiro capítulo da minha tese.

12.1.10

Com candura

Hoje terminei de ler Cândido do Voltaire. Recomendo-o a toda a humanidade. Penso que é um livro para ser relido de tempos em tempos. Não vou citar nenhum trecho pomposo para propagandea-lo. Cândido tem de ser apreciado de acordo com o "como" do desencadeamento dos eventos e as relações ou não-relações entre eles. Cândido pode parecer (e é, em diversas instâncias) singelo, como de fato se comporta o protagonista eponímico, mas existe nessa singeleza a aguda observação dos comportamentos humanos. Essa singeleza revela uma teia suficientemente complexa para envolver o leitor mais dostoieviskiano. Quem me dera ter mais candura.

10.1.10

Sobre como e quando decidiu começar a jogar rpg


Redescobriu um prazer tão infantil nas estórias de seres e lugares inventados. O lugar das fábulas celtas, onde vikings (ou "víquingue", em bom português!) nórdicos sentam-se em volta do fogo para compreender como os primeiros pássaros pretos vieram à Irlanda e como, fabulosamente, procriaram debaixo do chapéu do nadador que os trazia diretamente da Noruega, por horas a fio percorrendo as águas congelantes do Norte. Lá do Norte do Mundo. Esses seres eram grandes, tinham barbas e cabelos compridos de cor de fogo. Eram brutos e selvagens, mas tão desengonçados e pueris.

Também possuía imenso prazer no lugar onde habitavam seres belos e esguios, que viviam em plena harmonia com tudo o que os rodeava. Árvores flutuantes, cachoeiras tão altas cujas águas evaporavam ainda antes de tocar o chão, caramanchões cujas folhas continham as vozes de seus ancestrais, que já haviam devolvido à Terra a energia que um dia tomaram emprestada. Seres esses que sabiam quando matar outros seres ou quando lhes deixar ir em paz. E mesmo o ato de matar era solene, seguido por um ritual de reverência à Terra. A Terra, a Mãe que gerou, que garantiu a vida e a existência e agora transforma a existência em energia a outrem, ou de volta a si.

Divertia-se com as fantasias a que assistia agora, em sua jovem vida adulta, em filmes e desenhos e com as que lia em livros ilustrados para crianças. Lembrava-se com carinho das brincadeiras com os primos no interior das Minas Gerais: das estórias da alma da noiva de branco que os assombrava à noite na casa onde o pé-direito era alto e não havia forro. A alma da noiva de branco atravessava os quartos, pelo telhado alto sem forro. Ela e os primos dormiam em quartos distintos, mas podiam comunicar-se justamente por causa do teto sem forro. Sussurram e escutavam-se comentando sobre a tal da noiva. Sabiam que a alma da noiva na verdade eram os morcegos que habitavam a casa durante a madrugada, mas, quem sabe, eram os morcegos e a noiva também. Durante o dia, acreditavam que a noiva estaria na única capela da cidade. Nunca tiveram coragem de entrar lá. Lembrava-se de que, antes mesmo dessas invenções com os primos, quando ia à praia com o pai, o irmão e a avó paterna nas férias, acreditava escutar vozes de pessoas perdidas no fundo do mar. Comunicavam pelas conchas o seu fado e a sua saudade, para sempre habitantes das vastas águas. Dizia para o pai que sim, que escutava as mensagens desses seres e que sabia do que precisavam. Dizia isso para o irmão e ele não contestava. O irmão reportava as narrativas da irmã ao pai e acentuava a credibilidade das vozes das conchas. Depois saía por aí, contando números infinitos, que até hoje não parou de contar.

A lembranças das suas próprias invenções infantis e das novas-velhas invenções que experimentava em sua jovem vida adulta fizeram-na considerar o alto percentual de sonho que resiste em sua existência. É habitante de diversos mundos, visita-os de tempos em tempos. Inclusive este.