23.12.09

Robert W. Corrigan



A man, who used to write with passion for the theatre and about the theatre, once beautifully stated:

'Surely the emotional force of the actor's performance -- that quality which moves an audience -- resides in the fact that it possesses a mortality of its own, that it is gone into the past as irrevocably as any human action.' (Corrigan 1961: 99)

I wish I had met him (by the way, he was the founder of the Tisch School of Arts at NYU).

Why do the good ones have to die young? And so he did, but his words are not as mortal as any human action.


(Picture credits: Edvard Munch (1893-1894) - "Vampyr")

20.12.09

O silêncio


Domingo de manhã em Belfast, quando a terra virou o céu, e o céu virou a terra.
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8.12.09

Brian Friel e a Rússia dos seus sonhos

Abandono, abandono, isso não se faz. Abandono deste espaço de divagações, isso não se faz.

Na semana passada, li um artigo sobre o modo como Brian Friel identifica-se com a Rússia de Chekhov e de Turgenev. Sobre como toda aquela melancolia transpõe às barreiras nacionais e ecoa tão pungentemente no coração irlandês. Algumas citações nesse artigo levaram-me a um livro de algumas entrevistas com o Friel e excertos de diários. Preciosos pensamentos perdidos, meditações entre um dia e outro em meio à angústia da produção criativa.

E segue um excerto do diário do Friel de 2 de junho de 1977, em minha voz:

"O que faz de Chekhov acessível aos ma
is diversos tipos de pessoas por mais de 180 anos é a sua proposta de tristeza, a familiaridade da melancolia -- em detrimento da designação capciosa que seu trabalho recebe de 'Comédia'. A tristeza e a melancolia confortam. Mas a tragédia não. A tragédia pode por desfechos. Chekhov temia desfechos."

E o mais curioso é que Friel fez uma versão de
As Três Irmãs sem entender uma palavra de russo. Reuniu cinco traduções da peça em inglês padrão e criou a sua própria. Uma versão chekhvoviana-irlandesa. Ele acreditava que havia algo além da compreensão da língua na qual a peça foi originalmente criada. Ele procurava significados e essências, ritmo e fluidez.

8.10.09

Um pequeno furto

"Amo aquele cuja alma é profunda também na mágoa e pode perecer de uma pequena ocorrência pessoal: assim transpõe a ponte de bom grado.

Amo aquele cuja alma é transbordante, que se esquese de si mesmo e que todas as coisas estão nele: assim, todas as coisas tornam-se o seu ocaso.

(...) Amo todos aqueles que são como pesadas gotas caindo, uma a uma, da negra nuvem que paira sobre os homens: prenunciam a chegada do raio e perecem como prenunciadores." (Prólogo de Zaratustra)

"I love him whose soul is deep in his ability to be wounded, and whom even a little thing can destroy: thus he is glad to go over the bridge.

I love him whose soul is overfull, so that he forgets himself and all things are in him: thus all things become his downfall.

(...) I love all those who are like heavy drops falling singly from the dark cloud that hangs over mankind: they prophesy the coming of the lightning and as prophets they perish." (Zarathustra's Prologue)

Mais contribuições?...

16.9.09

Um texto um pouco duro


Mais uma vez, encontrava-me numa situação já vivida. Acreditava que sim, alguns eventos podem repetir-se, mas vêm sempre vestidos de roupagens distintas. E essa vez parecia confirmar minha hipótese sobre as repetições: agora, seria um pouco mais intelectualmente madura do que outrora, mas tinha dúvidas sobre a maturidade de minhas emoções e, conseqüentemente, de minhas ansiedades. No entanto, a situação era nova e, por isso, não poderia tomar por certo que lidaria com o problema com mais facilidade -- não era uma fase mais avançada do mesmo jogo; era outro jogo.

Retomo: 'Acreditava que sim, alguns eventos podem repetir-se, mas vêm sempre vestidos de roupagens distintas.' Divaguei em direção às sensações provocadas pelos eventos, mas minha proposição, na verdade, disserta sobre os eventos, elementos externos a mim, o ser, o indivíduo, a personagem da narrativa, e por conseguinte, os eventos são externos às sensações. Vamos aos eventos.

Os eventos podem ser condensados em um só (sozinho e somente): possuir muitas idéias e muitos caminhos em mente, mas não conseguir libertá-los. Não conseguir traduzir as idéias amorfas em palavras, ou, quem sabe até, em desenhos. E o desespero por traduzi-las existe porque é preciso estabelecer comunicação com outrem. Portanto, preciso de palavras organizadas de acordo com uma estrutura socialmente aceitável e adequada. Uma estrutura criativa, mas que se limita às convenções institucionais.

Retomo agora outro trecho: 'Não conseguir traduzir as idéias amorfas.' As idéias quando ainda não têm corpo, precisam dessa forma para tornarem-se sociáveis e não serem tão somente uma angústia individual. Aliás, nesse caso, a tarefa do indivíduo, a minha tarefa, é transformar as angústias em explicações. A partir desse processo, poderei sobre as angústias com a frieza ou a neutralidade da razão. Produziu-se conhecimento.

E penso em Zaratustra, que, de alguma forma fala disso mas com olhos voltados a tempos primordiais: 'Porque o medo -- é o sentimento hereditário e fundamental do homem; pelo medo, tudo se explica, o pecado original e a virtude original. Do medo nasceu também a minha virtude, que se chama: ciência. O medo, precisamente dos animais bravios -- é esse que há mais tempo se incutiu no homem e inclui o medo do animal que ele esconde em si mesmo e teme -- o animal interior, chama-lhe Zaratustra.' (Nietzsche, trad. Mário da Silva, Assim falou Zaratustra, p. 353)

Não sei se a invocação a Nietzsche deveria ter sido posta antes ou após o texto como fi-lo. Percebo que os parágrafos deste texto poderiam ser reorganizados em ordens diversas. Desabafo e invoco Zaratustra em meio aos emaranhados caminhos phdianos. Procurei Nietzsche inicialmente porque tinha em mente 'o eterno retorno', mas esse texto tomou seu próprio rumo e deu forma a si mesmo.

Não, não fui eu quem criou o mundo, ele se criou sozinho. No princípio, eram as idéias. As idéias eram sem forma e abstratas. A narradora desabafou: "essa velha angústia eterniza o ensaio que precede a apresentação, a troca com o público, o social. Faça-se um corpo." E assim um corpo se fez, num vomitar de palavras.

8.9.09

Dos telefones e das pastagens

Em meio às pastagens verdejantes do norte, bem do norte, onde o verde da relva aponta o fim, de onde se avista uma outra ilha, mas bem se sabe que lá também é o fim, e que depois dela acaba, lá havia um telefone amarelo. Amarelo e público.



Tão público era que não podia ser usado em ocasiões ordinárias. Somente sob concessão do extraordinário: caso acordasse o gigante cuja calçada fora pavimentada já há tantos milhares anos. Nesse caso, no caso de o gigante irromper das pastagens que se confundem com o fim e decidir sobreerguer a calçada, aí sim o telefone público e amarelo deverá ser utilizado.

Mas ainda não compreendo muito bem. Não sei bem se é calçada ou se é uma pilha de moedas, ou se é ainda uma calçada de pilha de moedas. Afinal, o gigante economizava uns trocados (que, para o gigante, são apenas uns trocados) ou provia pavimento para os pés dele?



Até hoje não sei, não me decidi. Quando me decidir, acreditarei e assim contarei a estória da próxima vez: era uma vez, um telefone amarelo e público em meio às relvas do fim, da relva que, quando se observa o horizonte com tento, confunde-se com o fim, o fim do mundo, onde o nada passa a existir. Lá, o gigante guardou seus trocados para...

3.9.09

Soltos e bêbados

Escrever ou submeter meus pensamentos a uma morte anestesiada, eis a questão.

Assim como os sonhos que, quando não relembrados logo que se acorda, se vão, passam como a sombra de um bêbado trôpego à luz de um poste molhado pela chuva da noite, assim. Assim como os tais dos sonhos, são os pensamentos precedentes ao texto, que se esvaem como os sonhos e as sombras dos bêbados e também como. Como minhas ideias que acabam de falecer. Des-falecem. Desmaiam de tanta ansiedade. Às vezes se escondem na esquina escura dos meus entrelaços neurais.

Num bar situado numa rua aliada à Coroa, ou seja, num bar aliado à Coroa, onde não se recomenda perguntar sobre futebol gaélico, vieram e foram-se vários desses pensamentos. Lá se pode perguntar sobre rugby, por ser um jogo pertinente à cultura da Coroa. Pode-se também assistir ao velho Hurricane, antigo fenômeno da sinuca norte-irlandesa, aclamado por aliados e des-aliados da Coroa. Lá, o velho Hurricane senta-se com o seu jornal local e faz cruzadinhas assistindo à partida de rugby. Enquanto mira o aparelho televisor a sua frente, uma senhora, sentada a sua frente, logo abaixo do daquele mesmo aparelho televisor, grunhe um pedaço de comunicação assassinado pelo cigarro e pelos anos. Ah, mas não perdeu a vitalidade. Violentamente grunhe, provoca o velho Hurricane tão empenhado em suas cruzadinhas e no aparelho televisor. Invejosamente grunhe a senhora de óculos sobrepostos à ponta do nariz e com a mão ocupada por copo de pouco mais de meio litro de cerveja. Ela queria que fosse ela. O velho Hurricane levanta-se, irritado, e ameaça fazer jorrar a loura cerveja sobre os louros cabelos da velha senhora.

Repete-se diariamente o episódio narrado no bar aliado à Coroa, na rua do Donegal, no cruzamento com a fileira do Sandy. Às vezes o jogo que passa no aparelho televisor muda.

À sentença da morte anestesiada.

19.8.09

It just dawned on me

A primeira, baseada em Medéia, de Eurípedes, a segunda, fruto de experimentalismo e da mesma autora que depois escreveu outra peça também baseada em Medéia. Os excertos expostos abaixo evocam um sentimento quase conformado da existência. Digo 'quase' porque existe ao menos reflexão e a mera existência dessa revela uma consciência, o príncipio desencadeador de uma mudança. Ainda assim, creio que ambas se constroem tragicamente, pois, mesmo dotadas de consciência, caminham com a mesma placidez ignóbil de sempre.

(1) RUPSA: […] (Dreamily, absent-minded) All of us are changing so! In the sun, in the rain, and burning up in the heat from this endless walking, this wandering about… something is happening to all of us…

(2) CURTAINS: They fell deeply even. The man put it down to the accident of birth, the boredom of the path and the finality of death.
The men nod.
The woman put it down to the perfume, the lipstick and the finality of the tit.
The woman nod.

[...]

CURTAINS: They agreed to be silent. They were ashamed, for the man and the woman had become like two people anywhere, walking low in the dark through a dead universe. There seemed no reason to go on. There seemed no reason to stop.
[...]

CURTAINS: [...] One day the man looked out of his window. 'It's time,' he said. So he got up on his bicycle and he rode all over the earth and he cycled all over the sea. One evening as he was flying over the highways he saw the woman in his path. 'Get out of my road,' the man said, 'I can knock her down or I can stop.' He did both. 'You,' she said, 'if you have courage, get off you bicycle and come with me.' (2)

(1) Nabaneeta Dev Sen, ‘Medea’ in Tutun Mukherjee (ed.) Staging Resistance: Plays by Women in Translation (New Dehli, India: Oxford, 2005: 92-93).

(2) Marina Carr, 'Low in the Dark' in Plays One (London: Faber & Faber, 2005: 57, 59, 99).

17.8.09

Rebote

Feliz, ao rever suas primas, apesar de não compreender muito bem porque as três estavam ali reunidas -- afinal de contas, elas sequer se conheciam --, X. não contestou nem conjecturou muito. Duas eram filhas de suas tias maternas e uma era filha de seu tio paterno. Avistavam uma bela praia da janela do apartamento localizado imprecisamente ali, no décimo primeiro andar. Não, não se recordava do andar. Recordava que era alto, muito alto, avistava a praia, quase vazia e uma espessa nuvem preta à esquerda na paisagem. A nuvem era tão espessa e tão escura que parecia haver somente o nada à esquerda ou, talvez, mais do que isso, o desconhecido. Ou talvez o nada e o desconhecido fossem o mesmo, mas ela não entendia essas coisas.

Foram à praia. Contentes estavam pelo sol que havia sobre elas, já que estavam do lado direito, e entraram no mar. X. só abriu os olhos novamente para sentir a incansável correnteza. Mas X. não precisava abrir os olhos para isso. Mas foi assim, só depois de abrir os olhos é que apercebeu-se da correnteza e teve medo e, com o medo, sentiu-se ansiosa. A sua frente havia um salva-vidas que parecia estático, parecia inafetado pela intensa correnteza que X. sentia. Mas o salva-vidas sentia a correnteza também, apesar de parecer congelado como uma fotografia. Sua expressão era congeladamente fotográfica, até que balançou a cabeça sinalizando que não a ajudaria, ele estava na mesma água que ela, sendo puxado pela mesma correnteza, mas parecia tão de fora. É claro, X., em seu desespero egoísta, não se deu conta de que outros poderiam sentir o mesmo desespero ao mesmo tempo que ela e, por isso mesmo, não tinham forças para ajudá-la. Não, X. não pensou nisso.

Desistiu de lutar e deixou-se levar pela água, cuja força e vivacidade pareciam brotar de um organismo em expansão que ensaiava explodir. X. fechou os olhos novamente. Não porque decidiu fazer isso, mas porque seu corpo fê-lo por ela. Fechar os olhos não era uma decisão a ser tomada, não era um ponto sobre o qual pensar. Ele simplesmente aconteceu e ela só se deu conta depois. O que via agora era a escuridão vazia que a chacoalhava. Não, isso ela pensou depois. Nada chacoalhava na escuridão. A escuridão era imóvel como uma fotografia.

Abriu os olhos novamente. Estava na água, que já não se movia mais, e sabia que abaixo de seus pés havia asfalto. Olhou em volta, tudo estava em seu lugar, apesar de estranhar um pouco, mas nem tanto, a água ao redor. Ali estavam os bancos à sombra das árvores na calçada que ficava rente à praia, que agora estava abaixo da água e não podia ser vista, mas seria possível caminhar sobre ela, se X. assim quisesse. Mas X. nem pensou nisso. Levantou-se e fechou os olhos, desta vez, porque acordou.

2.6.09

Sobre as histórias que contamos e ouvimos

‘[History] is not “about” the past as such, but rather about our ways of creating meanings from the scattered and profoundly meaningless debris we find around us … There is no story there to be gotten straight; any story must arise from the act of contemplation.’ (Kellner, 1989: 10 as cited in Baker, 2006: 16)

Condoída pelos últimos eventos areonáuticos e refletindo sobre o status de veracidade que teima em separar a ficção da ciência, imagino que sejam diversas as verdades e que as narrativas sejam as várias verdades que as pessoas criam e recriam.

Vejo-me assim: no meio desses restos de poltronas, boias, latas de querosene e óleo que formam o passado. E o passado é a tentativa de estórias que são a reunião de todos esses meus escombros.

22.5.09

22 de maio de 2009, impressões de um primeiro mês


Precisamente hoje completa-se meu primeiro mês aqui. Um mês de surpresas, confortos e desconfortos.

Os dois primeiros substantivos, carregados de significados positivos, são decorrentes da paisagem cheia de penhascos da costa norte, dos passeios de trem, do vento frio do Ártico, das músicas das tavernas, das senhorinhas dançando e tomando Guinness ou uísque com um sorrisinho maroto, de expressões como "a wee bit", "a wee second", "a wee seat", que poderiam ser traduzidas por meio de uma simples inserção do nosso jeito-africanês do sufixo diminutivo "-inho": "um pouquinho", "um segundinho", "uma sentadinha". As surpresas também decorrem das reviravoltas politicas deste lugar, tão cheias de sutilezas e camadas. Aqui no Norte, há irlandeses-irlandeses e há irlandeses-britânicos, cuja capital é Londres.

Essas questões identitárias se confrontam o tempo todo. Acordos políticos de cessar-fogo abrandaram enormemente os chamados "The Troubles". Mas as camadas estão mais submersas, pois não estão impregnadas somente nas memórias das pessoas, mas, mais do que isso, parecem correr em seu sangue. E eu, no meio de tudo isso, deparo-me com um pedaço de Ocidente nunca imaginado: não é Europa, tampouco é América. É Reino Unido, mas às vezes não é. Às vezes é English, às vezes Gaelic, mas às vezes é Hiberno-English.

E quando subo as escadas de casa, encontro ainda outro mundo: um que aos poucos se torna o meu. Minha vida num cenário cheio de paredes com aquecedores pendurados, botões para acionar o aquecimento da água, carpetes, janelas que devem ser fechadas à tarde para que a casa não esfrie demais. O fogão tem bocas elétricas e por isso não posso ver o fogo. Sinto falta do fogo. Compram-se isqueiro e velas e acendem-se as velas. Fogo. E assim meu mundo é recriado numa chama intermitente, ora azul, ora amarela, ora laranja, ora azul, ora laranja, ora amarela...

12.2.09

À deriva

A dor, criadora da necessidade da reconstrução dos significados, a fazia viva. A cada conflito, deparava-se com a dor e, naquele instante, sentia o embalo do ônibus auxiliando-a em suas re-significações. "It's that I'm going through the motions", desabafava Aimee Mann em seus ouvidos acolchoados por fones enquanto subia o morro da Lagoa e algumas pessoas atrás dela riam com todo ímpeto de seus pulmões. E aprendia que quando admite que algo a causa dor, torna-se propício re-significar suas histórias, seus eus, suas memórias e suas relações.

"E é a dor que me fisga que me traz ao que denomino neutro. Entenda, há vezes em que dormimos parcialmente juntos. O alicerce é a verdade, mas a verdade pode ser ainda tão superficial se vista somente sob o ângulo dos fatos desencadeadores. Entenda, entenda, a minha dor esconde-se sempre num recôndito mais profundo. A verdade é só o princípio das escavações. Repare, esse poço de alma é fundo. E a dor que sinto não é você, mas sou eu. Sinto-a porque me conheço, recordo-me do que fiz e senti. Recordo-me de minha própria ausência e da ilusão que criei na mente e no coração de alguns."

Apercebeu-se de que precisava de silêncio. Atravessou a rua e alcançou as dunas. Despediu-se de Aimee Mann que ainda cantarolava aos seus ouvidos. O silêncio da areia, o silêncio do mar a alguma distância. E uma súbita vontade de respirar Lispector para silenciar sua voz interna.

Enquanto dirigia seus passos à calçada, um homem a ultrapassou e, ao fazê-lo, olhou para trás. Seguiu mais um pouco e olhou novamente. Olhava insistentemente. "Sim, senhor, às vezes, as pessoas precisam estar sós. Elas não estão sempre buscando outra alma inquieta para compartilhar suas intempéries. Deixe-me só. O que procuro está aninhado dentro daqui. Não me pergunte coisa alguma, não fale. Não me interessam respostas, não me interessam explicações. Quero só os gritos das crianças na distância e os afagos do vento na areia e na água. Silêncio, por favor."

E retomou, "contente-se com minha verdade superficial e nunca saberás quem eu sou. Não é por mal que o faço. No momento, nem sequer me dou conta. É que o profundo vem depois, sorrateira e epifanicamente. Vem junto a uma fina dor pulsante, latente, seguida de uma convulsão. É preciso ter paciência e muita atenção para notar."

Acontecia que essa atenção não era racional. Precisava abrir a alma e fazer um transplante de pele.

21.1.09

O postal

Estava a trabalho no Canadá. Era uma das viagens de seus sonhos. As realizações apenas começavam. Dias poucos e curtos em Montreal, em Halifax e em Toronto, ocupados pelas visitas, relatórios, apresentações e outros eventos sociais, mas sempre havia uma brecha para a bebida noturna, cálida e solitária, capaz de relembrar-lhe de algo adormecido. Nesta noite, resolveu finalmente escrever no postal que comprara poucas horas antes, quando ainda era dia. “Êxtase, nunca imaginei lugar assim! Ainda morarei aqui um dia”. E assinou. Guardou o postal na bolsa, olhou em volta e conseguiu atrair o olhar do garçom. Ele veio, “Oui, madame, qu’est que vous voulez?” “D’autre... Non, rien, solement l’adition, merci”. E veio a conta. Deixou ali o pagamento junto com mais algumas moedas em resposta ao cortês e objetivo tratamento do garçom.

No dia seguinte, no intervalo entre reuniões, enviou o postal. Chegaria em dez dias úteis. Mas ela chegaria em menos de vinte e duas horas. Em solo brasileiro, avistou o motorista da empresa, sempre pontual e objetivo. Dirigiu-lhe a sua casa, onde a deixou com suas bagagens pesadas e subjetivas.

Os dias se passavam e não havia muitas novidades a não ser os eventos do trabalho que preenchiam suas horas e seus pensamentos por dois turnos de um dia. No terceiro e último turno, já não havia o que preencher nem com o quê preencher, mas havia uma constante expectativa. Uma semana se foi e, na caixa de correios de seu apartamento, havia um postal.

6.1.09

Uma crônica de nuvens

-- Os anos passam e você continua olhando para trás, despedindo-se da estrada.

Silêncio. Emudeço ao dar-me conta da observação. Considero a proposição metaforicamente por alguns instantes. O que me fez, o que eu fui, o que eu era e o que ainda sou. Constroem-se dois planos aqui. Deixo meu leitor interpretá-los. Volto ao plano compartilhado com meu primo:

-- Nossa, você se lembra disso...

Meu encantamento pelo aparente encontro de duas retas paralelas no horizonte. Ali, bem ali no infinito. Uma ludibriação visual? Matematicamente, elas jamais se encontrariam, um dia me desiludiu meu irmão.

Além da estrada, sempre cultivei apreço pela mutabilidade das nuvens. Seriam as nuvens habitantes de outro universo do qual eu via apenas uma parte? Sempre me punha a imaginar o que estaria por trás daquela brincadeira delas. Faço-me, desfaço-me, agrado essa, desagrado aquela outra nuvem, agrado a mim mesma por fim, e assim se decidem e assim revolvem suas vontades e concepções a respeito da existência. Percebo o quanto as nuvens fizeram o que sou.

-- Ocês vão ficá aqui?
-- Não, vó, tenho compromisso na cidade hoje à noite e a Joana vai voltar comigo.

A velha e recorrente pergunta data mais de vinte anos. Tenho certeza de que mesmo antes de eu escutá-la pela primeira vez, ela já existia. Sim, habitava o plano do infinito anterior.

-- Essa era a parte proibida do quintal.
-- É, a gente só brincava até aquela mangueira.
-- Aliás, foi nessa aqui que a gente começou a fazer uma casa na árvore, não foi?
-- Acho que sim, mas a gente nunca terminou.
-- Não, quando a gente começava as coisas, já tinha que ir embora.

Entrementes, Rogéria pergunta:

-- Ôceis querem da coquinho ou da comum? Deu tanta manga esse ano, mas agora num é mais época não. Se ocêis quiserem da comum, é do outro lado.
-- Época boa é fim de novembro, começo de dezembro, né?
-- É, o quintal tava cheinho, cheinho. Agora tem um monte de manga podre.
-- Hmm, acho que eu quero das duas. Tá bom dessa, é só um pouco pra mim e um pouco pra tia Sílvia. Tá bom assim.

E à direita, parece que a cerca foi trazida mais próxima à casa.

-- Ah, o quintal encolheu?
-- Acho que sim.
-- Ocêis tão achando o quintal menor, é? Num é o mato que tá grande?
-- Não... o mato sempre foi grande. Era maior até.

Retomo a antiga sensação de friozinho da barriga que sentia todas as vezes em que planejávamos nossa expedição ao outro lado do quintal. Claro que se nos deparássemos com algum porco solto no mato, sempre havia uma mangueira acolhedora por perto, pronta para nos salvar. Era o nosso pique. Da manga viemos e à manga retornaremos. A manga nos fez. E Rogéria recomenda que comamos as mangas verdes com sal e Sazon. Sazon?

-- É, João, novos hábitos têm sido incorporados às coisas velhas. Temos de passar por esse novo ritual.
-- Prima, falando em ritual, minha mãe cortava manga pra mim. Já que ela não tá aqui, você tem que fazer isso. Nunca fui bom nessas coisas. Ih, tá vendo.
-- Tá, agora o sal e só uma pitada de Sazon. Só um pouco... Acho que prefiro só com sal mesmo.

E as comuns são atacadas diretamente pelos dentes.

-- Sempre grudava no aparelho.
-- É, e agora eu tenho aparelho de novo.
-- Até sem aparelho grudava, principalmente nos dentes de baixo.

Vovó sai de sua cadeira costumeira, aquela que fica sempre ao lado da mesa da cozinha, no entanto, nunca virada na direção da mesa, mas do fogão à lenha. Aquela, da qual, virando o rosto para a esquerda, dá-se com o nariz no corredor. Senta-se agora sobre uma outra, não tão costumeira, mas também não tão inusitada, posicionada entre o fogão e a janela que dá para a casa da família da caseira. Ao lado dessa janela, havia uma porta para o banheiro ("A porta do banheiro era na cozinha!", exclamação a qual João responde, "É, tá no corredor agora, estranho, né?"). Vovó mexe no costumeiro bolsinho do vestido. Apercebo-me de que todos os vestidos dela têm um bolsinho secreto. No entanto, só agora compreendo.

-- Tem fósforo aí, vó?
-- Tem, uai, sempre tem.
-- Mas pra quê, vó?
-- Pra se acabá a lúis.

E chega o momento insituável que costumeiramente me fazia sentir tristeza por novamente deixar a vovó sozinha e alegria por voltar à cidade depois que os primos tinham ido embora e a diversão acabado. Mas dessa vez a melancolia surrupiava minha antiga vontade de voltar logo à casa na cidade. Desta vez, os pensamentos infantis egocêntricos e ignorantes de responsabilidades davam lugar àquela que era agora a criança que precisava de carinho e cuidados.

-- Tamo indo, vó.

Vovó caminha em direção à porta da frente. Costumeiramente, não nos acompanha até o portão. Não. Senta-se no banco rente à parede da porta da frente.

-- Noventa-e-oitchu-anos. Nascida em vinte-e-dois de dezembro de mil-novescentos-e-nove.
-- Até quanto a senhora vai, vó?
-- Não sei, não. Deus é que sabe. Eu não sinto nada! Noventa-e-oitchu anos e eu enxergo tudio! Nunca precisei de óculos.
-- É, João, eu puxei a vista da vovó. Mas olha, seus olhos são da cor dos dela! Castanho-esverdeado.
-- O seu é escuuuro. Pretinho. Seus ólho são muuuito bonitchu!
-- Brigada, vó.

E segue a pergunta costumeira:

-- Quando ocêis volta? Sábado a Sílvia vem aí?
-- Ih, não sei, vó. Bença, vó.
-- Deus te abençoe, meu filho.
-- Bença, vó.
-- Vai com Deus, minha filha.

Costumeiramente, a mesma poeira cobre o painel do carro e o mesmo cheiro do quintal de mangas da vovó nos acompanhará ao longo da estrada. Mas antes:

-- Será que ainda tem a Dorme-Maria?
-- Procurei outra vez e não achei.

Paramos o carro logo antes de atravessar o portão. Dorme-Maria, Fecha-Maria, como ela é mesmo? Até que:

-- Fechou!

Camufladas e um pouco ressequidas, porém com as costumeiras folhas em pares e pontiagudas, ao fazer algumas Marias dormirem, finalmente fomos brincar de nuvens.