7.2.10

Sete de Fevereiro de Dois Mil e Dez

Sete de fevereiro de dois mil e dez. Hoje foi o dia em que aquela senhorinha completou cem anos, um mês, duas semanas e dois dias. Nascida aos vinte e dois dias do mês de dezembro de mil novecentos e nove. É difícil escrever, é difícil pensar. Os sentimentos engasgam-se em meus olhos lacrimejantes nesta biblioteca onde escuto barulhos de teclas de computadores. A ideia de ficar sozinha em casa incomoda-me. Prefiro a solidão acompanhada de outros solitários na universidade. É um domingo silencioso em Belfast, o dia é cinza e plácido, mas sinto algo profundo, algo que não cabe em mim, algo bem maior do que eu. Eu temi por esse dia durante um bom tempo. Há oito anos passei a morar a pelo menos dois mil quilômetros de distância dela e temia pelo dia em que seria surpreendida por um telefonema avisando-me sobre sua partida. Mas como havia me prometido que completaria ao menos cem anos e como eu sempre acreditei nela, pois é a mulher mais sábia do mundo, meu temor facilmente apaziguava-se. Eu simulava sensações, imaginava o que sentiria quando ela se fosse. Pressentia o vácuo instalado dentro de mim. O vácuo deixado pela lembrança, pelo abraço que agora se passa somente na minha imaginação. O afago das mãos rudes, calejadas pelo trabalho doméstico e pelo tempo. Pelos seus cem anos de existência. Enquanto isso, choro lágrimas que não se secam, lágrimas que molham meu rosto e também lágrimas invisíveis. Escondo-me por detrás dos biombos dos computadores na biblioteca, onde olhos vizinhos não me alcançam -- ou, pelo menos, acho que não me alcançam. Hoje de manhã, ocorreu-me o porquê talvez de alguns autores iniciarem os seus primeiros livros quando uma pessoa a quem se é fortemente ligado se vai. Existe uma necessidade de imortalizá-la, um medo de que a memória não perdure o suficiente para honrar a passagem dessa existência, ou, "o [seu] breve intervalo de tempo entre o infinito anterior e o infinito posterior".

Eu não sei bem como era essa senhorinha antes da minha existência. Desconheço o que se passou durante a sua infância, a adolescência, o início da vida adulta, os amores, as decepções, o primeiro e único filho, os primeiros netos. O que sei foi-me narrado de surpresa, numa fase em que a vovó passou a lembrar-se e a falar vividamente sobre seus primeiros vinte anos, desabafos divertidos de memórias que vêm como sonhos: ou se fala ou se escreve sobre elas imediatamente, ou elas são perdidas nos vãos da alma, até, quem sabe, resolverem visitar-nos novamente. Soube assim, furtivamente, sobre o primeiro namorado galanteador de seus catorze anos de idade que lhe compunha canções aos pés de sua janela. E isso eu descobri só porque já aos seus noventa e cinco anos, ela, sentada sobre sua cadeira de sempre, ao lado da velha mesa na cozinha da casa que já subsistia antes de mim, começou a cantar durante o café da tarde, com a força de seus pulmões a tal da canção. E, ao fim, toda vaidosa, compartilha conosco o seu segredo: era a música que seu jovem amor lhe confessava na aurora de sua adolescência. Naquele momento, dei-me conta de que ela foi uma jovem moça um dia, conquistadora de corações, de pele macia e olhar pueril. Isso eu nunca soube, nunca vi, aconteceu durante o meu infinito anterior.

Mas o que sei, o que vi e vivenciei foi uma mulher que, de tão autêntica, era engraçada. Acho que não tinha consciência do quanto era divertida com as suas sinceridades: a alguns ofendia, a outros conquistava risos. Mas mesmo os ofendidos tinham-lhe certa reverência; neles havia secretamente um desejo de agrada-la, uma vontade de que ela gostasse deles. Pelo que eu observava, ela apreciava também os sinceros. Tinha sempre prontos o café e o clássico pão de queijo que ficava duro feito pedra se não fosse comido logo que saísse do forno. Depois de alguns anos, ja não os fazia mais. Talvez tivesse perdido a vontade de fazê-los quando já não os podia apreciar. Quando eu era criança, tinha sempre um receio de levar bronca da vovó. Não sei bem porque, não me lembro de um só olhar repreensivo, mas sim de me apertar e me dizer o quanto eu estava bonita e havia crescido. Era com tanto gosto que comia aquelas mangas, aqueles pães-de-queijo que me custaram dentes de leite, o café doce, o arroz com feijão. E aquele cheiro de fumaça que saia pela chaminé do fogão a lenha. Acho que ficava medrosa por causa das estórias do André. Ah, André! Mas, tudo bem, isso nos rendeu tantas invenções e mistérios que nos faziam perscrutar a cidade e a casa (tão grande!) debaixo daquele soléu que nos esturricava durante as caminhadas naquela terra vermelha seca, entre abre-e-fecha-marias. Um dia, Júnior e eu quebramos a torneira do tanque que ficava em frente à casa, perto do chiqueiro. André disse que vovó nos cortaria fora as orelhas e, para nos salvar, planejou uma fuga que, por horas, atarantou meu pai e meus tios.

O tempo se passou, nossa imaginação ja não visitava mais tantos mundos nem escutava mais tantas almas penadas. E a vovó, que para mim passou tanto tempo com oitenta e quatro anos, agora tinha noventa. Noventa e um, noventa e dois... E pediu-nos tataranetos. E olhava-me nos olhos e dizia como eram pretos e bonitos, mais bonitos que os dela, que eram cor-de-mel. Até hoje não sei bem porque a vovó era tão apreciadora de cabelos escorridos e pretos, olhos de jabuticaba e pele cor de jambo. Será que foi assim o seu grande amor?

E, há poucos meses, resolvi apressar-me, pois estava chegando o grande dia, meu e dela: o seu aniversário de cem anos. O dia que sempre quis ver chegar, por capricho infantil, por ter tanto orgulho da minha bisa centenária, que eu sempre achei que fosse eterna, que já vivia eternamente antes de mim e que continuaria depois até... sempre, infinito vezes infinito era a idade dela. Escrevi-lhe uma carta e fiz uma gravação minha lendo-lhe a carta. Era-me crucial que ela soubesse o quanto havia marcado a minha vida, o quanto era parte de mim, o quanto me sentia tão grata e ternamente ligada ela. Que era a senhorinha mais linda de todas, a minha vovó tão divertida e teimosa -- eu tenho sim a quem puxar! E ela soube, acredito eu. A carta foi lida pelo pai, numa de suas últimas visitas a Palmital, poucos semanas depois do falecimento de sua irmã mais nova. Se não compreendeu minhas palavras, creio que as recebeu com aquela alma tão alegre e carinhosa que sempre teve.

E foi assim. Acordei hoje de manhã antes do horário costumeiro de domingos preguiçosos. Acordei tranquila, tinha a mente ativa e tive vontade de ler. Voltei para debaixo das cobertas e, ao terminar 'The Task of the Translator' do Benjamin, ressoa o telefone. Era aquele aviso, temido por tantos anos. Eu queria que ela tivesse me esperado, só um pouco, só mais alguns meses. Mas ela me ouviu, levou com ela minha mensagem, meu carinho, meu amor. Ela sabia o quanto me era fundamental, o quanto meu breve intervalo de tempo só pode ser contado junto com o dela, com a última parte do seu breve intervalo. Que sorte a minha que nossos intervalos se cruzaram, o meu e o daquela senhorinha vaidosa, que todos os dias de manhã, fosse madrugada ou já houvesse sol, penteava os cabelos, pintava seu rosto e recebia de boa vontade o novo dia que estava prestes a começar.

Vó, conseguiu me escutar ou falo mais alto? Espero que tenha muito danoninho onde a senhora estiver. Se não tiver, eu levo depois e faço mingau também.

3 comentários:

  1. Tenho certeza que vocês se encontraram em tantos momentos especiais, como era especial o amor mútuo. Sua cartinha a emocionou, como a emocionaria hoje a homenagem de hoje, tão delicada e sincera. Na quinta-feira, ao abrir a sacola com as roupas dela, achei quatro danoninhos, do jeito que você se lembra deles. Nada mais próximo, nada mais vovó.
    Ela deve estar muito feliz com suas palavras! Como eu também estou.

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  2. Oi Prima... muito lindo o texto!!!
    Hoje fomos lá... muita saudade, muitas lembranças, muitas histórias, sem palavras... queria muito que vc estivesse lá também!
    Por mais incrível que pareça, ao abrir a gaveta misteriosa da mesa da cozinha (aquela ao lado da cadeira que vovó sempre ficava.. a "gaveta do Magaiver") encontrei uma velha torneira quebrada e enferrujada... será?!?! Tenho quase certeza que sim, pois afinal, pq uma gaveta de uma mesa de 95 anos não pode guardar uma simples torneirinha de aproximadamente 18 anos... hehehehe

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