6.1.09

Uma crônica de nuvens

-- Os anos passam e você continua olhando para trás, despedindo-se da estrada.

Silêncio. Emudeço ao dar-me conta da observação. Considero a proposição metaforicamente por alguns instantes. O que me fez, o que eu fui, o que eu era e o que ainda sou. Constroem-se dois planos aqui. Deixo meu leitor interpretá-los. Volto ao plano compartilhado com meu primo:

-- Nossa, você se lembra disso...

Meu encantamento pelo aparente encontro de duas retas paralelas no horizonte. Ali, bem ali no infinito. Uma ludibriação visual? Matematicamente, elas jamais se encontrariam, um dia me desiludiu meu irmão.

Além da estrada, sempre cultivei apreço pela mutabilidade das nuvens. Seriam as nuvens habitantes de outro universo do qual eu via apenas uma parte? Sempre me punha a imaginar o que estaria por trás daquela brincadeira delas. Faço-me, desfaço-me, agrado essa, desagrado aquela outra nuvem, agrado a mim mesma por fim, e assim se decidem e assim revolvem suas vontades e concepções a respeito da existência. Percebo o quanto as nuvens fizeram o que sou.

-- Ocês vão ficá aqui?
-- Não, vó, tenho compromisso na cidade hoje à noite e a Joana vai voltar comigo.

A velha e recorrente pergunta data mais de vinte anos. Tenho certeza de que mesmo antes de eu escutá-la pela primeira vez, ela já existia. Sim, habitava o plano do infinito anterior.

-- Essa era a parte proibida do quintal.
-- É, a gente só brincava até aquela mangueira.
-- Aliás, foi nessa aqui que a gente começou a fazer uma casa na árvore, não foi?
-- Acho que sim, mas a gente nunca terminou.
-- Não, quando a gente começava as coisas, já tinha que ir embora.

Entrementes, Rogéria pergunta:

-- Ôceis querem da coquinho ou da comum? Deu tanta manga esse ano, mas agora num é mais época não. Se ocêis quiserem da comum, é do outro lado.
-- Época boa é fim de novembro, começo de dezembro, né?
-- É, o quintal tava cheinho, cheinho. Agora tem um monte de manga podre.
-- Hmm, acho que eu quero das duas. Tá bom dessa, é só um pouco pra mim e um pouco pra tia Sílvia. Tá bom assim.

E à direita, parece que a cerca foi trazida mais próxima à casa.

-- Ah, o quintal encolheu?
-- Acho que sim.
-- Ocêis tão achando o quintal menor, é? Num é o mato que tá grande?
-- Não... o mato sempre foi grande. Era maior até.

Retomo a antiga sensação de friozinho da barriga que sentia todas as vezes em que planejávamos nossa expedição ao outro lado do quintal. Claro que se nos deparássemos com algum porco solto no mato, sempre havia uma mangueira acolhedora por perto, pronta para nos salvar. Era o nosso pique. Da manga viemos e à manga retornaremos. A manga nos fez. E Rogéria recomenda que comamos as mangas verdes com sal e Sazon. Sazon?

-- É, João, novos hábitos têm sido incorporados às coisas velhas. Temos de passar por esse novo ritual.
-- Prima, falando em ritual, minha mãe cortava manga pra mim. Já que ela não tá aqui, você tem que fazer isso. Nunca fui bom nessas coisas. Ih, tá vendo.
-- Tá, agora o sal e só uma pitada de Sazon. Só um pouco... Acho que prefiro só com sal mesmo.

E as comuns são atacadas diretamente pelos dentes.

-- Sempre grudava no aparelho.
-- É, e agora eu tenho aparelho de novo.
-- Até sem aparelho grudava, principalmente nos dentes de baixo.

Vovó sai de sua cadeira costumeira, aquela que fica sempre ao lado da mesa da cozinha, no entanto, nunca virada na direção da mesa, mas do fogão à lenha. Aquela, da qual, virando o rosto para a esquerda, dá-se com o nariz no corredor. Senta-se agora sobre uma outra, não tão costumeira, mas também não tão inusitada, posicionada entre o fogão e a janela que dá para a casa da família da caseira. Ao lado dessa janela, havia uma porta para o banheiro ("A porta do banheiro era na cozinha!", exclamação a qual João responde, "É, tá no corredor agora, estranho, né?"). Vovó mexe no costumeiro bolsinho do vestido. Apercebo-me de que todos os vestidos dela têm um bolsinho secreto. No entanto, só agora compreendo.

-- Tem fósforo aí, vó?
-- Tem, uai, sempre tem.
-- Mas pra quê, vó?
-- Pra se acabá a lúis.

E chega o momento insituável que costumeiramente me fazia sentir tristeza por novamente deixar a vovó sozinha e alegria por voltar à cidade depois que os primos tinham ido embora e a diversão acabado. Mas dessa vez a melancolia surrupiava minha antiga vontade de voltar logo à casa na cidade. Desta vez, os pensamentos infantis egocêntricos e ignorantes de responsabilidades davam lugar àquela que era agora a criança que precisava de carinho e cuidados.

-- Tamo indo, vó.

Vovó caminha em direção à porta da frente. Costumeiramente, não nos acompanha até o portão. Não. Senta-se no banco rente à parede da porta da frente.

-- Noventa-e-oitchu-anos. Nascida em vinte-e-dois de dezembro de mil-novescentos-e-nove.
-- Até quanto a senhora vai, vó?
-- Não sei, não. Deus é que sabe. Eu não sinto nada! Noventa-e-oitchu anos e eu enxergo tudio! Nunca precisei de óculos.
-- É, João, eu puxei a vista da vovó. Mas olha, seus olhos são da cor dos dela! Castanho-esverdeado.
-- O seu é escuuuro. Pretinho. Seus ólho são muuuito bonitchu!
-- Brigada, vó.

E segue a pergunta costumeira:

-- Quando ocêis volta? Sábado a Sílvia vem aí?
-- Ih, não sei, vó. Bença, vó.
-- Deus te abençoe, meu filho.
-- Bença, vó.
-- Vai com Deus, minha filha.

Costumeiramente, a mesma poeira cobre o painel do carro e o mesmo cheiro do quintal de mangas da vovó nos acompanhará ao longo da estrada. Mas antes:

-- Será que ainda tem a Dorme-Maria?
-- Procurei outra vez e não achei.

Paramos o carro logo antes de atravessar o portão. Dorme-Maria, Fecha-Maria, como ela é mesmo? Até que:

-- Fechou!

Camufladas e um pouco ressequidas, porém com as costumeiras folhas em pares e pontiagudas, ao fazer algumas Marias dormirem, finalmente fomos brincar de nuvens.

3 comentários:

  1. Cheio de contrastes esse texto. Contraste entre a sua linguagem difícil, quase acadêmica de narradora, e os singelos diálogos. Contraste que se toca levemente, com a suavidade de uma abre-fecha-maria. Pontes feitas tanto na narrativa quanto nos diálogos, tornando assim possível se brincar de nuvem. Vejo muito de Alinne nesse texto, sim. Não é a toa que foram selecionados a dedo os leitores...
    Beijo, linda.

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  2. Gostoso o conto!
    Quase arrepia...
    Dá aquele sentimentozinho bom e ruim ao mesmo tempo, sentimento de se despedir de vó.
    Mistura de satisfação do que se viveu com vontade de voltar atrás e começar tudo de novo.
    É triste. E muito bem escrito. Não cansa, mesmo deixando um pouco perdido no começo.
    Gostei!
    Saudade.

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  3. Aline, caraca !!! Clarice Lispector não tinha essa qualidade, essa sensibilidade amadurecida das simplicidades do homem. Tá no caminho certo!

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