12.2.09

À deriva

A dor, criadora da necessidade da reconstrução dos significados, a fazia viva. A cada conflito, deparava-se com a dor e, naquele instante, sentia o embalo do ônibus auxiliando-a em suas re-significações. "It's that I'm going through the motions", desabafava Aimee Mann em seus ouvidos acolchoados por fones enquanto subia o morro da Lagoa e algumas pessoas atrás dela riam com todo ímpeto de seus pulmões. E aprendia que quando admite que algo a causa dor, torna-se propício re-significar suas histórias, seus eus, suas memórias e suas relações.

"E é a dor que me fisga que me traz ao que denomino neutro. Entenda, há vezes em que dormimos parcialmente juntos. O alicerce é a verdade, mas a verdade pode ser ainda tão superficial se vista somente sob o ângulo dos fatos desencadeadores. Entenda, entenda, a minha dor esconde-se sempre num recôndito mais profundo. A verdade é só o princípio das escavações. Repare, esse poço de alma é fundo. E a dor que sinto não é você, mas sou eu. Sinto-a porque me conheço, recordo-me do que fiz e senti. Recordo-me de minha própria ausência e da ilusão que criei na mente e no coração de alguns."

Apercebeu-se de que precisava de silêncio. Atravessou a rua e alcançou as dunas. Despediu-se de Aimee Mann que ainda cantarolava aos seus ouvidos. O silêncio da areia, o silêncio do mar a alguma distância. E uma súbita vontade de respirar Lispector para silenciar sua voz interna.

Enquanto dirigia seus passos à calçada, um homem a ultrapassou e, ao fazê-lo, olhou para trás. Seguiu mais um pouco e olhou novamente. Olhava insistentemente. "Sim, senhor, às vezes, as pessoas precisam estar sós. Elas não estão sempre buscando outra alma inquieta para compartilhar suas intempéries. Deixe-me só. O que procuro está aninhado dentro daqui. Não me pergunte coisa alguma, não fale. Não me interessam respostas, não me interessam explicações. Quero só os gritos das crianças na distância e os afagos do vento na areia e na água. Silêncio, por favor."

E retomou, "contente-se com minha verdade superficial e nunca saberás quem eu sou. Não é por mal que o faço. No momento, nem sequer me dou conta. É que o profundo vem depois, sorrateira e epifanicamente. Vem junto a uma fina dor pulsante, latente, seguida de uma convulsão. É preciso ter paciência e muita atenção para notar."

Acontecia que essa atenção não era racional. Precisava abrir a alma e fazer um transplante de pele.

2 comentários:

  1. Já era quase noite e, ainda sobre a cama desde a manhã, cavava mais e mais fundo nas carnes do seu peito com as unhas roídas da véspera até encontrar o palito de dentes alfinetado de dentro para fora. Retirou-o e o examinou com curiosidade. A dor do buraco aberto a unhas era um décimo do interesse pelo palito recém retirado. Aí foi tomar banho, escovar os dentes, comer alguma coisa e ver se conversava com alguém de fora do seu universo.

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  2. Juntos, profundo, fundo, alguns; Eu adoro esse tipo cantante de texto. Com certeza foi o que mais me identifiquei,de todos que colocaste aqui. Tenho a mania de, também, sentir demais no ônibus. No ônibus, no carro, nas calçadas secas, molhadas ou sujas de areia. O hábito de pensar,embalando e re-significando não só verdades e paradigmas, mas também trechos de tantas cidades (que só se tornam vivas aí). E as feições dos estranhos que se deparam com nossa alma nua, sem ter a intenção disto, no segundo que nossos olhos se voltam de nós para o resto. Os pobres estranhos que serão para sempre aqueles rostos vazios, julgados sem dó pelo momento que neles estampa um espelho: momento que julga mas não nos deixa nunca esquecer. Acho que não só as cidades se tornam vivas aí...

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