22.1.10

Sobre 'Blasted', de Sarah Kane

Nesta chuvosa noite de inverno irlandês, inebriada por um pouco de vinho branco, lia a peça da dramaturga inglesa que morreu pouco depois de terminar de escrever seu quinto trabalho, 4.48 Psychosis. A estreia dessa última peça deu-se em 2000, no Royal Court Jerwood Theatre, um ano após seu suicídio. Seja a arte uma figuração da vida e esteja a arte indissociavelmente mesclada ao que é de mais íntimo e pessoal do autor ou não, nessa última peça, Sarah Kane narra a trajetória interna que leva a personagem ao sucidío e comete-o em seguida. Mas não estou aqui para escrever sobre Psychosis 4.48, mas sobre a primeira peça de Kane, Blasted. Senti-me estilhaçada por dentro depois de lê-la. Kane devia estar muito ciente do que queria fazer com aquelas palavras, com a escolha do título. A peça narra ruínas à volta das personagens que parecem ser uma consequência das ruínas da alma. Escrever sobre essa peça que acabo de ler ou não? Relutei, escrevi, apaguei e re-escrevi várias linhas de tão chocante que me foi, mas acho que precisava colocá-la fora de mim, dissipá-la.

Em Blasted (1992), Kane transporta a guerra balcânica, contemporânea daquela época, à Inglaterra. Ela traz a violência, aquela justificada por amor à pátria, por amor à ordem, o estilhaçamento da vida, por dentro e por fora das personagens, à realidade britânica. Um homem mais velho leva sua ex-namorada vinte anos mais nova a um quarto de hotel. Ela, ingênua, acompanha-o por comiseração. Ele parecia infeliz. Ele aproveita-se de sua fragilidade, de suas convulsões epilépticas para saciar a voracidade de seu instinto animal -- invariavelmente justificado pelo adjetivo masculino 'masculino', cujo sentido é invariavelmente ampliado por 'masculinidade'. Na manhã seguinte, um soldado bate à porta. Não estamos mais em Leeds, Inglaterra, estamos na Bósnia. Ou quem sabe a Inglaterra sempre foi a Bósnia.

A transição entre as cenas (trata-se de uma peça de um ato com cinco cenas) é demarcada pela chuva, que começa cálida como aquela trazida pela primavera, é intensificada pela estrondosa chuva de verão, o que demarca a mais grotesca das atrocidades ocorridas, e termina calidamente, encerrando o ciclo, com uma chuva de outono. O violador foi violado por um dos peões da guerra que representa também aqueles que sofreram acusações racistas da parte do violador da jovem de 20 e poucos anos, um galês meio inglês. Todos são maus, todos são bons, todos são fortes, todos são frágeis, todos usam máscaras, todos choram como bebês. O violador agora pede carinho, pede comiseração e morre, com a chuva que lava e tudo leva... Leva quase tudo, mas deixa os seus espectadores desolados.

Blasted é um soco no estômago que produz um vômito sangrento. A arte vomita a vida.

3 comentários:

  1. Acabo de ler a peça.
    Sinto um arrepio.
    Que coisa nojenta. Mas mais nojento ainda é pensar que o ser humano é assim.
    Sarah nos convida a um mundo completamente escuro. E você tem de se decidir se embarca nessa ou não. Eu embarquei, duvidoso, querendo voltar.
    Estranhamento grande.
    Mas embarco na vontade de conhecer as outras peças.
    Que mundo louco.
    Palavras esparsas... acho que preciso de um tempo para formular meu pensamento sobre esta peça.
    Abraços.

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    1. Olá, Rafael, dê-se um tempo e volte! E terrível é também pensar que uns acham que são mais dignos de sofrer do que outros. Que só ocidente é digno de longas reportagens quando morrem um ou dois, enquanto no oriente morrem dezenas por conta do ocidente.

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