2.12.17

Zeca

Me lembrei do Zeca. Me lembrei hoje quando resolvi desenhar e pintar com um lápis-giz-de-cera. Sempre nessas ocasiões me lembro dele, uma pessoa de quem nunca me lembro hora nenhuma. Sempre reflito sobre fazer coisas que não envolvam ler ou escrever - porque ler, apesar de ser um deleite, é também sempre um modo de estar trabalhando, mesmo sem querer. Um dia desses então resolvi comprar um caderno de desenho. Há tempos não usava um lápis macio para desenhar, esfumaçar, um lápis para colorir. Encostar o lápis no papel sem um projeto em mente, sem objetivos, sem metodologia, sem bibliografia, sem análise, sem teoria, sem introdução, sem problema. Sem problema, sem pesquisa, sem nada. Só um lápis rabiscando um papel. Às vezes, no redemoinho dos objetivos e das introduções, lembro do caderno e de todas as suas folhas em branco. E dos vários lápis que carrego no meu estojo, cheio de canetas que uso para corrigir, apontar erros, sugerir aprimoramentos, assinar, atestar, declarar, certificar, aprovar, reprovar, dar notas. Mas os lápis me lembram do caderno, que me lembra de desenhar, que me lembra do Zeca.

O Zeca era, ou é, um homem de história tortuosa. Ele namorava minha tia mais nova, irmã da minha mãe. Minha tia mais nova era, ainda é, louca, impetuosa, aventureira. Para muitos, é irresponsável, desequilibrada, desmiolada, extravagante. Para mim, quando criança, era divertida, franca e espontânea. Nunca parava em emprego nenhum. Tinha uma filha, que nunca viu o pai. E tanto fazia, ao menos para minha tia, não para minha prima. Minha mãe, tentando firmar minha tia na vida, sempre procurava emprego para ela, oferecia de trabalhar um tempo lá em casa, fazendo faxina duas vezes na semana. Quando minha tia vinha, ela corrompia tudo. Trazia e falava de filmes de terror, os mais satânicos possíveis, em fitas de VHS. Eu e meu irmão ficávamos apavorados, mas completamente enfeitiçados. Minha mãe nunca sonhou com isso, pelo menos não enquanto éramos crianças. Isso foi segredo trancado a sete chaves por quase vinte anos.

Minha tia, que me oferecia cerveja quando eu tinha sete anos (prova, menina, vai. Argh, coisa amarga), um dia juntou com Zeca. O Zeca é uma pessoa tão improvável e tão memorável ao mesmo tempo. Ele surge num intervalo, num milésimo de segundo, entre a lembrança do caderno e o primeiro rabisco. Zeca virou pai para minha prima, não sei até que ponto. Mas parecia meio pai às vezes. Do ajuntamento de minha tia e ele, veio mais uma prima, que no começo foi bem filha para ele. Mas minha tia e Zeca tinham um relacionamento muito cheio de ventania. Eles moraram por anos num puxadinho, aos fundos da casinha da minha avó, na Ceilândia, Distrito Federal. Um dia fui dormir lá, devia ter uns 7, 8 anos, e acordei de madrugada com o clarão de um fogaréu e calorão vindo dos fundos da casa. Minha tia e Zeca tinham brigado, sei lá porquê, poderia ter sido por conta da cerveja que tinha acabado ou de quem tinha comido o último torresmo, ou por ciúmes ou qualquer outra coisa. Podia ser coisa pequena feito torresmo ou grande feito ciúme, tanto fazia. A briga seria e tinha sido do tamanho dos rompantes da minha tia. Rompante de alegra, de tristeza, que por vezes a fazia sumir e andar por dias a fio, de qualquer coisa. Mas nunca de raiva. Mas naquela noite, ela resolveu mandá-lo para fora de casa e tocar fogo no colchão onde dormiam. Só agora entendo o quão apegada a símbolos minha tia podia ser - talvez fosse aquela a sua maneira de fazer poesia? Transformando metonínias em literalidade? O colchão ardia em chamas, mas logo viraria um pó cinza, fedido, fumacento, que sujaria o minúsculo pátio entre a casa da minha vó e a edícula. Minúsculo. Era a única parte do terreno descoberta e lá só cabia um tanque. Não sei se foi nessa madrugada que Zeca foi embora e não voltou mais. Eles foram e voltaram tantas e tantas vezes. Mas, na minha memória, foi assim. Então... o colchão, que tanto ardia em chamas, virou pó e Zeca se foi para nunca mais voltar.

Mas Zeca me ensinou a desenhar. Me lembro de Zeca com uma folha de papel em branco sobre a mesa me explicando sobre como desenhar uma árvore, cheia de galhos e folhas. A árvore que eu sabia fazer era um tronco com um grande algodão doce em cima. A árvore do Zeca era frondosa, dava até para dar impressão de que o vento estivesse soprando nela, balançando cada uma daquelas folhas. Zeca também me ensinou a pintar sem deixar vazar as bordas. Tinha que pintar as margens primeiro e depois pintar dentro das margens, melhor que fosse na mesma direção sempre porque senão ficava marcado na folha, dava para ver na textura do desenho e aí podia estragar tudo. Ali no desenho tinha sempre algo muito harmônico e ordeiro, como em nada mais no Zeca, nem na minha tia. Mas, por causa do desenho, tudo no Zeca para mim era calmo e cuidadoso. Eu não entendia o colchão em chamas, nem as muitas idas e vindas do Zeca. A felicidade e a amargura da minha tia e do Zeca, a crença do certo, a realidade do instável, do caos e do nada.

Anos se passaram e eu nunca mais vi o Zeca. Talvez tenha sido desde o episódio do fogaréu, talvez depois. Não sei para onde Zeca foi. Sei que nunca mais viu sua filha, nem minha outra prima, sua enteada. Não viu o neto que nasceu quando minha prima mais nova mal completou 15 anos e foi morar com seu namorado, que era carroceiro e que mais tarde foi preso por tráfico. Zeca sumiu. Zeca era um homem bruto, mal escrevia o próprio nome. Tinha mãos cheias de calos de ter trabalhado em roça e em obra a vida inteira. E Zeca se preocupava com os contornos do desenho e com o vento que batia nas folhas da árvore. Onde estaria Zeca agora? Teria partido para se tornar um grande desenhista? Zeca, o grande desenhista de árvores. Zeca, cuja obra de destaca pela minúcia dos contornos.



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