15.11.17

Altruísmo

São cinco da manhã, toca o despertador. Hora de levantar, tomar as rédeas do seu corpo que vacila, fazer-se sociável de novo. Lava o rosto, confere a carteira para ver se os documentos estão lá, segue a vistoria mental de quem não tem mais tempo para conferir as coisas no lugar de onde acaba de sair, apalpa os bolsos das calças e da bolsa. Tudo o que está ao seu alcance aí está.

Ao chegar no aeorporto, segue para a rotina de sempre, precedida, porém, pelo necessário líquido vital, que a fará mover-se com mais destreza. Sorve contente o quentinho fumegante daquele café, que termina tão rápida e subitamente. É possível caminhar de novo, sobre suas duas pernas, com seu rosto que pode ser visto. A noite breve, de poucas horas dormidas, se insinua. É preciso escorar-se, onde for. Para quê toda essa dignidade, para quê todo esse rostinho a ser visto, se o que sente é a vontade de desalinhar-se para aninhar-se no frio do chão de aeroporto. O que deseja é desmanchar-se no chão, no aconchego do piso que a segura, segura agora suas duas pernas, que, por sua vez, tentam segurá-la, de seu peso que tanto pesa agora. O peso da breve noite de horas pouco dormidas, a noite breve de peso, de poucas dormidas horas. O breve peso da noite das dormidas e poucas horas.

Mas repousa somente o desejo, pois todas as cadeiras, todas as paredes, todos os encostos da sala de embarque estão ocupados. Li uma vez um verso de poema que dizia: "All the good seats are taken", mas onde foi, onde...

"Última chamada para embarque no voo XX7865... Gestantes e crianças... Blah... Blah..."

***
No avião, consegue finalmente o assento tão almejado, apesar de apertado, lá está. Sua poltrona ereta e dura é um abraço carinhoso.

Ppppppppp. Tctctctctctc. Mãe, mãe, manhê... Pppppppppp. Tctctctctctc. Não, esse não, mãe, manhêeeee... PppPPPPPPPPPPPPPP!!!!! TctctctcTCTCTCTCTCT!!! MANHÊeee

O momento de mostrar seu rosto que pode mostrar (ou não) vem à prova, mostrar ou não mostrar. Ensaia: "A senhora poderia pedir, por gentileza, por favor, com toda a sua bondade, para seu filho parar de chutar a minha poltrona? É de manhã cedo, todos madrugamos, preciso dormir, nem que sejam 20 minutos, tenho um dia longo pela frente."

Não. Negociar não precisa, pois tão perto de si repara que tem uma carta valiosa na manga, afinal o valor das coisas se mede pelo seu contexto: está num dos assentos mais preciosos e cobiçados de uma aeronave, apesar de preferir o corredor, pondera. Nota outro pequeno menino, ao seu lado, que tenta por tantas vezes conversar com pai, que dele teve de ser separado para sentar na outra ala. Janela, lá está ela, poltrona do meio, menino, corredor, mãe, corredor oposto, pai. Separei uma família, como pude.

Nesse ínterim, retoma a criança de trás:
Ppppppppp. Tctctctctctc. Mãe, mãe, manhê... Pppppppppp. Tctctctctctc. Não, esse não, mãe, manhêeeee... PppPPPPPPPPPPPPPP!!!!! TctctctcTCTCTCTCTCT!!! MANHÊeee

Ensaios são denesnessários. Lança-se no palco e improvisa seu mais belo ato:

"Vocês não querem sentar juntos?" Sorri atenciosamente para a mãe, que tem o filho ao seu lado, mas separada está de seu marido, por todo um corredor. "Ai, a gente 'tava com vergonha de pedir," responde a esposa, tão mãe e tão comedida. "Imagine! Eu até prefiro o corredor."

Satisfeita, senta-se na outra ala, depois de deixar de lado seu precioso assento da janela para unir uma família. Sua nova poltrona a abraça.

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