23.8.15

Notas sobre a Córdoba latino-americana, parte II

Sábado frio e ensolarado. Destinos planejados, rotas a serem desenhadas.

Parto rumo ao Mercado Norte o Mercado de la Ciudad. No caminho, passo pelo Palacio de la Justicia, um edifício imponente, projetado por José Hortal e Salvador Godoy em estilo neo-clássico. Inaugurado em 1936, possui à sua frente uma espaçosa praça, o Paseo Sobremonte, que permite que transeuntes contemplem a fachada do palácio. A praça, por sua vez, um exemplar do século XVIII, é decorada com quatro estátuas principais que correspondem às estações do ano. "Un paraíso para las cuatro patas", diz um sítio sobre o Paseo Sobremonte. E com pertinência. Cachorros divertem-se entrando e saindo da fonte, buscando bolas e gravetos e, eventualmente, metendo-se em brigas e brincadeiras.

Palacio de la Justicia. Foto por A.F.

Prossigo rumo norte em direção ao rio Suquía, que percorre a cidade de leste a oeste. Cerca de dois quilômetros e meio depois, chego ao Mercado. As ruas vizinhas são cheias de ambulantes, feirinhas onde se vendem dos mais diversos artefatos, mas especialmente quinquilharias chinesas. Todo aquele movimento me lembra a confusão da Medina em Marrakesh, mas em menores, bem menores proporções. Quase que involuntariamente, vasculho um pouco mais a memória. Penso na minha mãe. Hoje cedo, antes de sair, senti-me profundamente nostálgica e lembrei-me muito do meu pai como um grande companheiro de viagem. Logo em seguida, pensei no quanto não pensara na minha mãe nos últimos dias. Mas aqui me veio certeira e pulsante. Lembrei-me das histórias que contava sobre o Mercado Norte em Taguatinga, quando Brasília e suas cidades satélites eram quase que só aquela terra vermelha e poeira. E havia o tal do Mercado onde minha mãe, com os míseros centavos de cruzeiro, comprava as suas pequenas bonecas que na época chamavam-se "fofoletes". As bonecas, a fatia de melancia vendida pela japonesa e o picolé de abacaxi eram presentes que a pequena Elza se dava do que sobrava de troco das bananas e laranjas que comprava para a minha avó. Pensei longamente nela, crescendo num período no qual a palavra do dia era escassez. Tudo e qualquer coisa que se tinha era valioso como ouro. Pensei se ela se lembraria do seu Mercado Norte e o relacionaria com este Mercado Norte se estivesse aqui comigo. Este, repleto de carnicerias y cereales com ares de um lugar que não parece ter mudado muito com o passar das décadas; o dela, que não mais existe tal e qual, mas que certamente sobrevive algures.

Prossigo. Continuo rumo norte, em direção ao rio. Percebo que a vizinhança muda bastante de aspecto, pareço adentrar uma região não só geográfica quanto sócio-economicamente periférica da cidade. Observam-me, desta vez, não com aqueles olhares penetrantes, mas com olhares de curiosidade. Sinto-me estrangeira. E é essa é a marca do estrangeirismo que sinto também em terras natais, quando visito minha avó na Ceilândia. Ao meu ver, é esta a mais inexorável marca da diferença e do culturalmente outro: a classe social. Alguns quarterões acima e alcanço o rio. Diferentemente de La Cañada, as margens do Suquía são malcuidadas. Paralelamente ao rio, passam duas avenidas bem movimentadas sem semáforos e de alta velocidade. Não parece ser um lugar a ser visitado. Atravessando a ponte em minha direção, vejo um homem vestido em trapos sujos arrastando um carrinho de compras. Transporta itens coletados aqui e ali -- para vender? Para levar para casa? E aqui está a boa e velha marca latino-americana, a dos contrastes bem marcados, da diferença que se percebe bem marcada ao aproximar-se das margens do rio. E como essas marcas existem na geografia das cidades. Em Belfast, separam-se católicos e protestantes ora pelos trilhos do trem, ora por um muro. Em Florianópolis, separam-se os pobres da classe média e dos ricos por acidentes geográficos, os pobres sobem aclives. Em Caracas, os ricos estão no alto de prédios feitos com vidros reluzentes com vista para o mar do Caribe, enquanto os pobres estão logo abaixo, numa praia que mais se parece com a Ilha das Flores de Jorge Furtado. E aqui, mais um acidente geográfico contundentemente marca a diferença entre o norte e o sul.

Subo a San Martin em direção à Plaza de mesmo nome, onde está a Catedral de Córdoba, uma das suas maravillas artificiales. A catedral teve o início de sua construção no século XVI, mas foi concluída com sua fachada também neo-clássica em 1706. Em meu caminho de volta ao apartamento para almoçar, passo num mercadinho para ver se há algum vinho interessante para levar para casa. O dono do estabelecimento é cortês, me diz que há vinhos melhores do que eu o que procuro na mesma faixa de preço. Digo-lhe que estou de partida de volta para o Brasil hoje mesmo e que preciso de uma boa amostra argentina para levar de volta para casa. Ele se recusa a crer que já me vou, me pergunta quanto tempo fiquei e se voltarei à Córdoba porque gostaria muito de me convidar para tomar uma taça de vinho. Acabo levando duas garrafas por um valor menor que eu estava determinada a pagar. Tenho a impressão de que ganhei um desconto de 25 pesos numa das garrafas. Pergunta-me se pretendo tomar o vinho que estou comprando hoje ou no Brasil. No Brasil, respondo. Mas quanta lisonja!...

À tarde, prossigo minha incursão por esta cidade que se revela um verdadeiro passeio pela história da arquitetura e das memórias políticas dos argentinos. Vou ao Paseo del Buen Pastor, um centro cultural onde há exposições, concertos gratuitos e peças teatrais, que até o final da década de 70 funcionou como uma penitenciária para mulheres. As últimas mulheres lá aprisionadas foram prisioneiras políticas e muitas delas desapareceram durante uma das várias ditaduras militares da argentina. O espaço, repleto de fontes e jovens casais, foi completamente reciclado e erguido em homenagem a essas mulheres em 2001.



Esse dia, que me pareceu tantos e me rendeu tantas sensações num só, me trouxe ainda o Parque Sarmineto, onde me senti um tanto quanto melancólica com tantas crianças e cachorrinhos correndo para cima e para baixo e, por fim, o Museo de Bellas Artes Palacio Ferreyra. Lá, tomei minha merienda Argentina, com direito a dos medialunas, sumo de naranja, marmelada, mantequilla y cafe con leche. Ah, o prazer que vem junto com o café do fim da tarde, especialmente quando tomado ao sol e com vista para um jardim tão cuidadosamente projetado.

Parque Pres Sarmiento - Foto por A.F. 

Terminada a visita aos quatro andares do museu, senti que era chegada a hora da despedida. Córdoba de muitas boas surpresas e histórias, sinto-me encantada, profundamente enamorada. 



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