23.8.15

Notas sobre o controle de fronteiras

É madrugada. Tudo o que dormi foram vinte minutos antes de ir ao aeroporto de Córdoba. Procedimentos de praxe feitos: mala despachada, passagens em mão, é a vez da segurança do aeroporto. Um dos agentes do aeroporto pede para ver meu passaporte, digo que foi junto com a pasta do computador, que está passando pelo raio-x. Ele pede para que eu converse com o policial federal depois do raio-x. Esse me pergunta, "o que você faz?" "Sou professora." "De quê?" "De literatura." E refaz as mesmas perguntas. O que me pareceu num primeiro momento mera charla era, na verdade, uma investigação. Confusa, me irritei, estava morta de sono e cansaço. Ele continua a perguntar o que vim fazer em Córdoba, por quanto tempo e por quê, o motivo da ida para Florianópolis. Finalmente pergunto o porquê de todas aquelas perguntas. Só então ele me diz que faz parte de um procedimento padrão, a escolha é aleatória e eu fui a escolhida. Me diz então que precisarei acompanhá-lo para que minha mala, que já fora direcionada à aeronave, seja sondada.

Leva-me até um corredor vazio. Fico tensa. Pensamentos paranóides me vêem à mente talvez por influência da exposição que vi ontem de Carlos Alonso com sua sequência de desenhos de estupro e rapto de mulheres durante a última ditadura na Argentina. Tomamos um elevador e ele explica que o procedimento é aleatório e o fato de eu ter parecido nervosa dá-lhes indícios de que devem desconfiar de mim e de que escondo algo ilícito. Penso, não é nervosismo, é puro cansaço e mau humor, vontade de estar na minha cama. Lá embaixo, ele me pede para esperar numa fila onde mais três mulheres jovens passam por uma revista de malas. Abrem as malas de todas elas, tiram tudo de dentro, pedem para que as rearrumem. Listo. Meu embarque já havia começado, eles chamam uma mulher para revistar a minha mala. Ela tenta ser simpática demais. Pergunta novamente num tom como se estivesse de fato querendo me conhecer, curiosa. Me irrita. Ela não quer ser amiguinha, isso é um interrogatório. "Você está viajando sozinha? O que faz? Ah, é professora, é verdade. O que veio fazer em Córdoba? O que faz em Florianópolis?" Me sinto uma louca respondendo às mesmas perguntas pela terceira, quarta vez? "É casada, solteira ou divorciada?" Sou divorciada. Suspendem-se as perguntas. "Mas você é muito jovem para ser divorciada. Que idade tem?" 31. "Ah, parece ter menos." Esboço um sorriso amarelo. Prossegue, "mas ainda assim é muito jovem para ser divorciada." E me pergunta se gosto de mate e me fala do seu namorado italiano. No meio da conversa, com um certo cinismo e enquanto remexe minha mala, diz que está sentindo um cheiro forte no ar e gesticula. Tenho vontade de responder que devem ser as minhas calcinhas sujas. "Ah, deve ser algo daqui deste lugar," responde ao seu próprio questionamento. O único agente que se comporta de modo estritamente profissional é aquele que simplesmente me cumprimenta, contextualiza a sequência de eventos e vai direto ao ponto: me explica que é um procedimento padrão e que devo assinar um documento de praxe, etc, etc. Esse foi o terceiro. Assinado o documento, finalmente posso embarcar.

1h20min dormidos no total esta noite. Minha mala, que por sinal é emprestada, teve os dois puxadores do zíper arrebentados e meu cadeado, é claro, desapareceu. Abro-a, verifico que nada foi retirado da mala. Pergunto ao funcionário da Gol se a empresa aérea poderia me oferecer alguma espécie de compensação ao dano causado. Em princípio não porque o zíper funciona. Ah, claro.

Quero colo. Mas de todos os eventos, o que mais me incomodou foi o julgamento sobre ser divorciada. Mais uma vez, dou-me conta da minha bolha de assuntos e escolhas livres. Dou-me conta do mundo lá fora que parece não ter saído da década de 70. Quanto incômodo ainda parece causar uma mulher jovem e sozinha. Quanto estranhamento vivenciado ao deparar-se com pessoas que escolhem a própria sorte. Tento imaginar como é ser transgênero em meio a interrogatórios oficiais e necessariamente heteronormativos, seguidores fiéis do patriarcado tão firmemente alicerçado nos valores de nossos e nossas compatriotas latino-americanxs.




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